quarta-feira, setembro 14, 2016

As premissas da moralidade

Há poucos dias li algo que ainda agora me deixou pensando. Basicamente dizia o seguinte: hoje achamos um absurdo a execução de pessoas por feitiçaria, comum séculos atrás, e facilmente nos julgamos superiores àquelas pessoas supersticiosas e "bárbaras"; porém, se acreditássemos nas mesmas coisas que elas, faríamos diferente?



Boa pergunta. Nossas crenças informam nossa ética. Parece até muito óbvio. Voltaire já dizia que, "se acreditarmos em tolices, cometeremos atrocidades". Entretanto, a moralidade individual não é um reflexo perfeito da cultura do entorno, tanto que existem transgressões e dissidências. Há um quê de individualidade, imprevisível, na maneira como o código cultural recebido será processado por cada um e traduzido em comportamentos e decisões morais. Apesar disso, existem tendências gerais seguidas pela maioria, conforme a época. Para mudá-las, é preciso mudar a informação em que se baseiam, de alguma forma: mostrar, por exemplo, que determinado comportamento considerado um tabu não produz realmente consequências sérias (vide os tabus sexuais e de gênero, por exemplo) ou, ao contrário, que certa prática "natural" na verdade gera problemas (duelos, trabalho infantil, racismo...). Tais coisas têm lá suas premissas; sem mudar estas últimas, fica muito mais difícil alterar os comportamentos que induzem.

Isso me leva a questões como o aborto. Hoje, é tema espinhoso, porque envolve geralmente duas concepções muito diferentes sobre a realidade: uma puramente materialista e outra, espiritualista. Para a primeira, o embrião ou feto, não sendo um ser humano acabado ou com sensibilidade à dor, pode ser extirpado sem que realmente haja sofrimento, logo a prática é legítima; já para a segunda, há nele um ser com toda sua dignidade, que não se reduz a um "punhado de células" e, portanto, o abortamento causa, sim, um prejuízo crucial, afinal envolve matar uma pessoa. Como se vê, são duas concepções excludentes entre si, o que torna o "diálogo" entre as partes uma mera disputa de poder em que ninguém realmente está aberto a considerar o ponto de vista do outro. Nesse contexto, que fazer?

Desenvolvendo o raciocínio sobre informação, haveria uma forma de resolver o problema definindo o status do embrião/feto. Explico: ele é mesmo uma personalidade prejudicada pelo aborto? Se for possível demonstrar que há alguém (e não algo) ali, o debate se reduziria tremendamente. Essa é, por exemplo, a perspectiva espírita: uma vez que se tem a possibilidade de constatar que o embrião/feto de hoje é um ser humano completo, um "Espírito", que já teve outras vidas, tem consciência de si, personalidade própria, e agora está voltando para um novo ciclo de experiências, o aborto deixa de ser visto como uma disputa em torno apenas da gestante e seus direitos e passa a ter uma parte interessada a mais. A abordagem do assunto muda completamente.

Entretanto, provar tal coisa para além dos muros da fé é algo que ainda não foi feito. Sim, mensagens falando do aborto de uma perspectiva espiritual existem aos montes; mas torná-las críveis para não espíritas além de qualquer dúvida ainda é um grande desafio. O que Kardec e outros espiritualistas diziam há 160 anos acerca da crucialidade de provar os fenômenos espíritas, e a imortalidade da alma, ainda é válido, pois tal conhecimento, se reconhecido pela sociedade, mudaria tudo. Não apenas o aborto, mas questões como a guerra, a pena de morte, as relações de gênero, o tratamento dispensado aos menos favorecidos, a ética pública de maneira geral. Muitos de nossos debates mais candentes, objeto de tanta paixão ideológica, se tornariam simplesmente obsoletos: como ver no aborto uma afirmação da liberdade individual, se o abortado é uma pessoa que terá consciência do que lhe aconteceu? Como defender a pena de morte para um criminoso, sabendo que ele continuará "vivo" num outro plano de existência, com a possibilidade de influenciar os que ficaram aqui?

Assim, pesquisas científicas que demonstrem a dimensão espiritual da vida, compreendida como mais do que uma fantasia, um ilusão psicológica para mentes fracas, podem ter uma importância social gigantesca. Há século e meio, contudo, as que existem tentam sair do "gueto" da crença religiosa. Terão sucesso? Como adepto espírita, quero crer que sim.

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