sábado, setembro 17, 2016

"Lei do Mérito" (Emmanuel)

Se presumes que Deus cria seres privilegiados para incensar-lhe a grandeza, pensa na justiça, antes da adoração.

Para isso, basta lembrar as circunstâncias constrangedoras em que desencarnaram quase todos os grandes vultos das ciências, das religiões e das artes, que marcaram as ideias do mundo, nas linhas da emoção e da inteligência. 
 
Dante, exilado.
Leonardo da Vinci, semiparalítico.
Colombo, em desvalimento.
Fernão de Magalhães, trucidado.
Galileu, escarnecido.
Behring, faminto.
Lutero, perseguido.
Calvino, endividado.
Vicente de Paulo, paupérrimo.
Spinoza, indigente.
Milton, privado da visão.
Lavoisier, guilhotinado.
Beethoven, surdo.
Mozart, em penúria extrema.
Braille, tuberculoso.
Lincoln, assassinado.
Joule, inválido.
Curie, esmagado sob as rodas de um carro.
Lilienthal, num desastre de aviação.
Pavlov, cego.
Gandhi, varado a tiros.
Gabriela Mistral, cancerosa. 
 
E se os gênios da altura de Hugo e Pasteur, Edison e Einstein, partiram da Terra menos dolorosamente, é forçoso reconhecer que passaram, entre os homens, também sofrendo e lutando, junto à bigorna do trabalho constante. 
 
Cada consciência é filha das próprias obras.
Cada conquista é serviço de cada um.
Deus não tem prerrogativas ou exceções.
Toda glória tem preço.
É a lei do mérito de que ninguém escapa.
Do livro "Justiça Divina"
Emmanuel / Francisco C. Xavier

quarta-feira, setembro 14, 2016

As premissas da moralidade

Há poucos dias li algo que ainda agora me deixou pensando. Basicamente dizia o seguinte: hoje achamos um absurdo a execução de pessoas por feitiçaria, comum séculos atrás, e facilmente nos julgamos superiores àquelas pessoas supersticiosas e "bárbaras"; porém, se acreditássemos nas mesmas coisas que elas, faríamos diferente?



Boa pergunta. Nossas crenças informam nossa ética. Parece até muito óbvio. Voltaire já dizia que, "se acreditarmos em tolices, cometeremos atrocidades". Entretanto, a moralidade individual não é um reflexo perfeito da cultura do entorno, tanto que existem transgressões e dissidências. Há um quê de individualidade, imprevisível, na maneira como o código cultural recebido será processado por cada um e traduzido em comportamentos e decisões morais. Apesar disso, existem tendências gerais seguidas pela maioria, conforme a época. Para mudá-las, é preciso mudar a informação em que se baseiam, de alguma forma: mostrar, por exemplo, que determinado comportamento considerado um tabu não produz realmente consequências sérias (vide os tabus sexuais e de gênero, por exemplo) ou, ao contrário, que certa prática "natural" na verdade gera problemas (duelos, trabalho infantil, racismo...). Tais coisas têm lá suas premissas; sem mudar estas últimas, fica muito mais difícil alterar os comportamentos que induzem.

Isso me leva a questões como o aborto. Hoje, é tema espinhoso, porque envolve geralmente duas concepções muito diferentes sobre a realidade: uma puramente materialista e outra, espiritualista. Para a primeira, o embrião ou feto, não sendo um ser humano acabado ou com sensibilidade à dor, pode ser extirpado sem que realmente haja sofrimento, logo a prática é legítima; já para a segunda, há nele um ser com toda sua dignidade, que não se reduz a um "punhado de células" e, portanto, o abortamento causa, sim, um prejuízo crucial, afinal envolve matar uma pessoa. Como se vê, são duas concepções excludentes entre si, o que torna o "diálogo" entre as partes uma mera disputa de poder em que ninguém realmente está aberto a considerar o ponto de vista do outro. Nesse contexto, que fazer?

Desenvolvendo o raciocínio sobre informação, haveria uma forma de resolver o problema definindo o status do embrião/feto. Explico: ele é mesmo uma personalidade prejudicada pelo aborto? Se for possível demonstrar que há alguém (e não algo) ali, o debate se reduziria tremendamente. Essa é, por exemplo, a perspectiva espírita: uma vez que se tem a possibilidade de constatar que o embrião/feto de hoje é um ser humano completo, um "Espírito", que já teve outras vidas, tem consciência de si, personalidade própria, e agora está voltando para um novo ciclo de experiências, o aborto deixa de ser visto como uma disputa em torno apenas da gestante e seus direitos e passa a ter uma parte interessada a mais. A abordagem do assunto muda completamente.

Entretanto, provar tal coisa para além dos muros da fé é algo que ainda não foi feito. Sim, mensagens falando do aborto de uma perspectiva espiritual existem aos montes; mas torná-las críveis para não espíritas além de qualquer dúvida ainda é um grande desafio. O que Kardec e outros espiritualistas diziam há 160 anos acerca da crucialidade de provar os fenômenos espíritas, e a imortalidade da alma, ainda é válido, pois tal conhecimento, se reconhecido pela sociedade, mudaria tudo. Não apenas o aborto, mas questões como a guerra, a pena de morte, as relações de gênero, o tratamento dispensado aos menos favorecidos, a ética pública de maneira geral. Muitos de nossos debates mais candentes, objeto de tanta paixão ideológica, se tornariam simplesmente obsoletos: como ver no aborto uma afirmação da liberdade individual, se o abortado é uma pessoa que terá consciência do que lhe aconteceu? Como defender a pena de morte para um criminoso, sabendo que ele continuará "vivo" num outro plano de existência, com a possibilidade de influenciar os que ficaram aqui?

Assim, pesquisas científicas que demonstrem a dimensão espiritual da vida, compreendida como mais do que uma fantasia, um ilusão psicológica para mentes fracas, podem ter uma importância social gigantesca. Há século e meio, contudo, as que existem tentam sair do "gueto" da crença religiosa. Terão sucesso? Como adepto espírita, quero crer que sim.

sábado, setembro 10, 2016

Tempos de impeachment

No momento em que escrevo, o país ainda está rachado. O impeachment de Dilma Rousseff se faz presente em debates para prefeito, em discussões escolares, em postagens de rede social, em conversas (não raro conflituosas) entre amigos...em toda parte, enfim. Durante a maior parte da vida ouvi que o brasileiro era apático demais com política, e agora parece que isso mudou: ela se faz presente, mas a qualidade desse interesse é duvidosa. Para usar uma expressão recente, virou Fla x Flu.



Dada a raridade de um processo de impeachment, é mesmo de se esperar tal coisa. Porém, diferente de com Collor, existe no processo atual uma peculiaridade: não é tanto a pessoa de Dilma que se questiona, mas o seu partido e sua ideologia. No banco dos réus, simbolicamente, não estava apenas uma presidente acusada de maquiagem fiscal, mas o maior partido da esquerda brasileira e tudo que a ele se associou. Daí as reações apaixonadas, daí o ódio e o amor no conflito febril de narrativas que infectou o Brasil. Para uns, era a prova de que "A Esquerda" era corrupta e maligna, e Dilma era o avatar do militante autoritário do DCE; do artista burguês, morador da Zona Sul ou dos Jardins, cheio de opiniões progressistas sobre tudo; do intelectual "crítico" cheio de referências de um lado só das questões; do sindicato corporativista que só pensa em mais e mais benefícios; de todos os estereótipos de críticos do "sistema" que se apresentam como depósitos da verdade e da virtude. Já para outros, ela era um projeto emancipatório da sociedade, comprometido com os desfavorecidos e deserdados; era a mulher no poder na linha de batalha contra o patriarcalismo; a barreira contra os corruptos e "coronéis" que sempre dominaram o Brasil; era a vingança dos mártires da velha esquerda contra a ditadura militar; era, enfim, a padroeira da esperança de um Brasil mais justo, o Brasil onde "outro mundo era possível".

Dilma era Legião, porque era muitas.

No entanto, é possível que, ao verem tanta coisa nela, ao projetarem no seu drama todos esses afetos, os nossos guerreiros políticos tenham perdido de vista a realidade. Mais precisamente, o contexto do embate do impeachment: o desvelamento de como funciona o sistema político brasileiro. Propinas generosas a candidatos e partidos de esquerda, centro e direita; listas de beneficiários de superfaturamentos e subornos; leis casuísticas que afrouxam controles do poder pelo público; chicanas jurídicas para atrasar processos que deveriam ser céleres; órgãos que não julgam o que deveriam; foros privilegiados e, por último mas não menos importante, alianças de última hora entre facções que, se princípios valessem alguma coisa e "golpe" fosse mais que um slogan, deveriam ser adversárias ferozes. Enquanto aqui embaixo, no reino do comum dos mortais, encenamos uma briga entre o Bem e o Mal, rompendo com amigos e familiares, aplaudindo figuras públicas que expressem nossas raivas e frustrações, agindo como se o mundo fosse acabar se o "outro lado" chegasse ao poder ou continuasse nele, o sistema persiste. Ele está ferido, sim, mas vai acabar se reorganizando enquanto acharmos que a cidadania se resume a fazer prevalecer nossa própria tribo partidária sem maiores engajamentos, ou que nos rebaixamos ao tentar dialogar com os "bárbaros" que não pensam como nós. Mais do que isso: quando não tentamos, pelo menos os que temos os meios e a instrução mínima para isso, entender o mundo em que vivemos, as ideias que professamos, e a realidade inegável de que o mundo é muito mais diversificado, até, do que a maioria de nós gostaria -- mesmo os pluralistas mais descolados.

Para mim, que fui agnóstico quanto ao mérito do impeachment até a tentativa de nomeação de Lula como ministro -- ao mesmo tempo um insulto e uma demonstração clara de inabilidade política -- essa "guerra" cotidiana, que nos intimou a ter posição, incomoda muito mais do que a luta pelo poder em Brasília. Afinal, ela toca intensamente em valores, princípios, ideias e sentimentos, e estarrece o observador sincero. Mesmo depois de ter optado por uma posição, continuava difícil obter informação confiável em meio à guerra de narrativas que só se acirrava. Jornais, sites obscuros, postagens de Facebook e Twitter, memes, blogs, partidos, todo mundo competia pela minha confiança; o recurso aos especialistas também não ajudava muito, já que juristas, cientistas políticos e economistas não conseguiam chegar a um consenso sobre uma série de pontos. "Há crime!", "Não há crime!" viraram palavras de ordem incansavelmente repetidas, e eu quase invejava os convictos, tão confiantes na sua causa e nos links e "textões" reunidos em prol dela. Vi pessoas que admiro compartilhando tolices, mesmo depois de alertadas; vi historiadores, colegas meus, propalando profecias apocalípticas e analogias tenebrosas muito além do que os fatos autorizavam; fui insultado em público por ex-alunos -- excelentes e admiráveis ex-alunos, com quem sempre me dei bem -- que pelo menos por um dia viram em mim o inimigo. Ao meu redor, pessoas de quem esperava mais me decepcionavam agindo como gado, enquanto -- tragédia -- me dava conta de que, a cada opinião expressa, eu as decepcionava também. A única escapatória seria o mutismo, mas quem aguenta ficar calado diante dos choques diários das notícias e do burburinho infindável de amigos virtuais? Eu não. E agora, mesmo depois do rito cumprido e do processo realizado, sei que a guerra vai continuar, especialmente na área que me compete: afinal, não somos nós os porta-vozes por excelência do que será transmitido para as novas gerações? Já antevejo a disputa de hoje traduzida em aulas e livros didáticos amanhã, e tenho dúvidas quanto a se ela se dará de forma realmente honesta. A paixão, aliada a uma narrativa heroica e unilateral, já tem abafado a objetividade e a prudência de muita gente boa. De repente, a frase de Pôncio Pilatos, "O que é a verdade?", ganhou uma nova urgência.

Para isso, não tenho soluções prontas. Não sou guru. Reconheço que muitas opiniões que possa ter sobre muitos temas serão superficiais, questionáveis ou simplesmente erradas. Nestes tempos de debates diários sobre tudo em rede social, isso é certamente uma limitação -- mas é parte da condição humana, que se há de fazer? A rigor, há, sim, o que fazer: se errar de vez em quando na substância pode ser inevitável, pode-se buscar o erro honesto, ao menos. Muito do que envenena as discussões em torno do impeachment e temas correlatos vem basicamente de duas coisas: a imprudência na divulgação de materiais sem verificação (de memes a pseudorreportagens tendenciosas, geralmente fáceis de evitar) e o maniqueísmo. O primeiro nos leva à questão de conhecimento/ignorância, pois remete ao engano da pessoa que propaga; o segundo é uma questão moral e ideológica: não raro envolve a estereotipação/desumanização do outro e o cultivo de um antagonismo a priori que, na nossa cultura, facilmente se torna pessoal -- além de ter sido estimulada por propagadores de ódio oportunistas, alguns com grande visibilidade na grande imprensa ou na mídia virtual.  Esse é um tema que tem me preocupado muito, mas que tem complexidades para desenvolver noutro momento. Por ora, deixo apenas este registro melancólico.

O azar de Foucault


Em 1975, quando Michel Foucault lançou "Vigiar e Punir", uma de suas obras mais famosas, obteve boas resenhas. Porém, o brilho de seu livro na França foi eclipsado por uma outra, "Arquipélago Gulag", do dissidente soviético Alexander Soljenitsin. Por quê? Mark Lilla responde: "Diante deste poderoso relato de tortura física e mental conduzida por um regime que muitos na França ainda consideravam a vanguarda do progresso social, era difícil sustentar que as salas de aula ocidentais eram prisões e ainda se manter dentro dos limites do bom gosto." Mais tarde, quando as pessoas começaram a fugir em barcos dos comunistas que haviam acabado de tomar o poder no Camboja e no ex-Vietnã do Sul, as piadas que Foucault contava sobre crueldade e dor já não causavam mais riso.

Fonte: The Reckless Mind: Intellectuals in Politics (Revised Edition, 2016.)

segunda-feira, setembro 05, 2016

Sabedoria em tempos de Facebook

"O problema em ser um intelectual público é que, com o tempo, você se torna cada vez mais público, e cada vez menos intelectual." (Jean Bethke Elshtain.)