No momento em que escrevo, o país ainda está rachado. O
impeachment de Dilma Rousseff se faz presente em debates para prefeito, em discussões escolares, em postagens de rede social, em conversas (não raro conflituosas) entre amigos...em toda parte, enfim. Durante a maior parte da vida ouvi que o brasileiro era apático demais com política, e agora parece que isso mudou: ela se faz presente, mas a qualidade desse interesse é duvidosa. Para usar uma expressão recente, virou Fla x Flu.
Dada a raridade de um processo de impeachment, é mesmo de se esperar tal coisa. Porém, diferente de com Collor, existe no processo atual uma peculiaridade: não é tanto a pessoa de Dilma que se questiona, mas o seu partido e sua ideologia. No banco dos réus, simbolicamente, não estava apenas uma presidente acusada de maquiagem fiscal, mas o maior partido da esquerda brasileira e tudo que a ele se associou. Daí as reações apaixonadas, daí o ódio e o amor no conflito febril de narrativas que infectou o Brasil. Para uns, era a prova de que "A Esquerda" era corrupta e maligna, e Dilma era o avatar do militante autoritário do DCE; do artista burguês, morador da Zona Sul ou dos Jardins, cheio de opiniões progressistas sobre tudo; do intelectual "crítico" cheio de referências de um lado só das questões; do sindicato corporativista que só pensa em mais e mais benefícios; de todos os estereótipos de críticos do "sistema" que se apresentam como depósitos da verdade e da virtude. Já para outros, ela era um projeto emancipatório da sociedade, comprometido com os desfavorecidos e deserdados; era a mulher no poder na linha de batalha contra o patriarcalismo; a barreira contra os corruptos e "coronéis" que sempre dominaram o Brasil; era a vingança dos mártires da velha esquerda contra a ditadura militar; era, enfim, a padroeira da esperança de um Brasil mais justo, o Brasil onde "outro mundo era possível".
Dilma era Legião, porque era muitas.
No entanto, é possível que, ao verem tanta coisa nela, ao projetarem no seu drama todos esses afetos, os nossos guerreiros políticos tenham perdido de vista a realidade. Mais precisamente, o contexto do embate do
impeachment: o desvelamento de como funciona o sistema político brasileiro. Propinas generosas a candidatos e partidos de esquerda, centro e direita;
listas de beneficiários de superfaturamentos e subornos; leis casuísticas que afrouxam controles do poder pelo público; chicanas jurídicas para atrasar processos que deveriam ser céleres; órgãos que
não julgam o que deveriam; foros privilegiados e, por último mas não menos importante,
alianças de última hora entre facções que, se princípios valessem alguma coisa e "golpe" fosse mais que um slogan, deveriam ser adversárias ferozes. Enquanto aqui embaixo, no reino do comum dos mortais, encenamos uma briga entre o Bem e o Mal, rompendo com amigos e familiares, aplaudindo figuras públicas que expressem nossas raivas e frustrações, agindo como se o mundo fosse acabar se o "outro lado" chegasse ao poder ou continuasse nele, o sistema persiste. Ele está ferido, sim, mas vai acabar se reorganizando enquanto acharmos que a cidadania se resume a fazer prevalecer nossa própria tribo partidária sem maiores engajamentos, ou que nos rebaixamos ao tentar dialogar com os "bárbaros" que não pensam como nós. Mais do que isso: quando não tentamos, pelo menos os que temos os meios e a instrução mínima para isso, entender o mundo em que vivemos, as ideias que professamos, e a realidade inegável de que o mundo é muito mais diversificado, até, do que a maioria de nós
gostaria -- mesmo os pluralistas mais descolados.
Para mim, que fui agnóstico quanto ao mérito do
impeachment até a tentativa de nomeação de Lula como ministro -- ao mesmo tempo um insulto e uma demonstração clara de inabilidade política -- essa "guerra" cotidiana, que nos intimou a ter posição, incomoda muito mais do que a luta pelo poder em Brasília. Afinal, ela toca intensamente em valores, princípios, ideias e sentimentos, e estarrece o observador sincero. Mesmo depois de ter optado por uma posição, continuava difícil obter informação confiável em meio à
guerra de narrativas que só se acirrava. Jornais, sites obscuros, postagens de Facebook e Twitter, memes, blogs, partidos, todo mundo competia pela minha confiança; o recurso aos especialistas também não ajudava muito, já que juristas, cientistas políticos e economistas não conseguiam chegar a um consenso sobre uma série de pontos. "Há crime!", "Não há crime!" viraram palavras de ordem incansavelmente repetidas, e eu quase invejava os convictos, tão confiantes na sua causa e nos
links e "textões" reunidos em prol dela. Vi pessoas que admiro compartilhando tolices, mesmo depois de alertadas; vi historiadores, colegas meus, propalando profecias apocalípticas e analogias tenebrosas muito além do que os fatos autorizavam; fui insultado em público por ex-alunos -- excelentes e admiráveis ex-alunos, com quem sempre me dei bem -- que pelo menos por um dia viram em mim o
inimigo. Ao meu redor, pessoas de quem esperava mais me decepcionavam agindo como gado, enquanto -- tragédia -- me dava conta de que, a cada opinião expressa, eu as decepcionava também. A única escapatória seria o mutismo, mas quem aguenta ficar calado diante dos choques diários das notícias e do burburinho infindável de amigos virtuais? Eu não. E agora, mesmo depois do rito cumprido e do processo realizado, sei que a guerra vai continuar, especialmente na área que me compete: afinal, não somos nós os porta-vozes por excelência do que será transmitido para as novas gerações? Já antevejo a disputa de hoje traduzida em aulas e livros didáticos amanhã, e tenho dúvidas quanto a se ela se dará de forma realmente honesta. A paixão, aliada a uma narrativa heroica e unilateral,
já tem abafado a objetividade e a prudência de muita gente boa. De repente, a frase de Pôncio Pilatos, "O que é a verdade?", ganhou uma nova urgência.
Para isso, não tenho soluções prontas. Não sou guru. Reconheço que muitas opiniões que possa ter sobre muitos temas serão superficiais, questionáveis ou simplesmente erradas. Nestes tempos de debates diários sobre tudo em rede social, isso é certamente uma limitação -- mas é parte da condição humana, que se há de fazer? A rigor,
há, sim, o que fazer: se errar de vez em quando na substância pode ser inevitável, pode-se buscar o
erro honesto, ao menos. Muito do que envenena as discussões em torno do
impeachment e temas correlatos vem basicamente de duas coisas: a imprudência na divulgação de materiais sem verificação (de memes a pseudorreportagens tendenciosas, geralmente
fáceis de evitar) e o maniqueísmo. O primeiro nos leva à questão de conhecimento/ignorância, pois remete ao engano da pessoa que propaga; o segundo é uma questão moral e ideológica: não raro envolve a estereotipação/desumanização do outro e o cultivo de um antagonismo
a priori que, na nossa cultura, facilmente se torna pessoal -- além de ter sido estimulada por
propagadores de ódio oportunistas, alguns com grande visibilidade na grande imprensa ou na mídia virtual. Esse é um tema que tem me preocupado muito, mas que tem complexidades para desenvolver noutro momento. Por ora, deixo apenas este registro melancólico.