Acabei vendo o badaladíssimo 300, que reconta o célebre confronto entre o orgulho espartano e o poder esmagador do Império Persa na batalha das Termópilas, no século V a.C. Em tese, eu deveria ter ido por interesse profissional, uma vez que leciono História Antiga para uma legião de crianças que provavelmente só lembrarão alguma coisa dos espartanos pelo filme. Na verdade, contudo, o que me motivou foi o fato de ter lido a novela gráfica de Frank Miller e, desde Sin City, ter ficado curioso a respeito das adaptações desses quadrinhos mais autorais. Sim, confesso que também quis ver o Xerxes de Rodrigo Santoro, uma vez que a imprensa não tem cansado de lembrar que ele finalmente teve falas significativas num filme de Hollywood. Em todo caso, fui sem maiores pretensões: numa época em que os grandes estúdios insistem em compensar maus roteiros com efeitos especiais, saber que o filme foi todo feito em chroma key foi um bom motivo para ter reservas. Lembrei logo de pérolas como Van Helsing e Os Irmãos Grimm, que não se decidem entre ser um filme de terror ou um videogame sem interatividade.
Mas eis que, em uma quarta-feira ensolarada, lá fui eu de Caxias à Barra da Tijuca, assistir ao badalado épico numa tela digna da história que ele conta. Começado o filme, a primeira coisa que me chamou a atenção foi, claro, a estética: desde o princípio, 300 tem um ar de videoclipe. Os cortes, as cores, a alternância veloz entre câmera lenta e normal em cenas de confronto, sem falar em outros tantos exageros (o primeiro "vilão" é um lobo gigantesco que parece saído de um desenho da Disney). Em alguns momentos, isso beira o ridículo: numa cena em que Leônidas e os éforos consultam o oráculo, a moça seminua que a interpreta faz uma "dança" com os vapores que aspira que, sinceramente, só pode ser descrita como forçada. Tive a impressão de que o filme seria melhor se o diretor simplesmente deixasse a história fluir sem esse tipo de apelação. Já basta os éforos, anciões respeitáveis que eram o verdadeiro poder em Esparta, parecerem figurantes de filmes de zumbi, com mais pústulas por centímetro quadrado do que seria clinicamente imaginável. Isso para não falar dos mutantes que adornam as hostes persas...
Falando nos persas, é a partir de sua entrada em cena que o exagero do filme fica ainda mais patente. É fato que os espartanos optaram pelas Termópilas porque, sendo um desfiladeiro, ali os persas, mesmo sendo muito numerosos, só poderiam atacá-los um pequeno grupo por vez. Com isso, a falange levaria vantagem, o que explica como Leônidas, que, na vida real, contava com alguns milhares de aliados, além dos famosos 300, conseguiu resistir aos invasores por três dias. Essa estratégia é bem mostrada no filme, mas até aí o exagero é patente. Os persas simplesmente se jogam sobre as lanças gregas como lemingues ao mar, morrendo aos borbotões; as espadas gregas cortam membros humanos com uma facilidade de fazer inveja a cavaleiros jedi ou à noiva de Kill Bill; e os espartanos demonstram uma agilidade e uma força que ficariam melhores num filme de fantasia kung-fu que num suposto épico histórico. Não pude deixar de lembrar dos seriados japoneses do gênero tokusatsu, em que um ou mais heróis vencem dúzias de adversários que misteriosamente só atacam um de cada vez. No caso de 300, isso acontece em meio a muitos urros selvagens e caretas guerreiras, além da generosa exibição de torsos ultra-esculpidos, devidamente privados das armaduras que a fidelidade histórica exigiria. Num filme tão orgulhoso de sua testosterona, os espartanos vão à guerra como quem vai a uma pelada, apenas com a diferença de que eles levam escudos e algumas armas (para que mantimentos?) em vez da bola. Também, para que se preocupar? Os persas, vestidos dos pés à cabeça, são de tal forma atraídos pelas suas lanças e espadas helênicas que em pouco tempo até muralhas são erguidas com seus cadáveres. Em alguns momentos do filme, o público é levado a crer que a vitória realmente é possível, que a brava trupe de Leônidas vai abrir caminho à vontade entre as fileiras persas e põr as mãos no próprio Xerxes.
Xerxes... Como todos a esta altura já sabem, o grande rei persa, imortalizado por Heródoto em sua História, deixou a circunspecta túnica e a venerável barba dos monarcas persas para se tornar um mostruário de piercings de quase três metros de altura e voz sobrenatural. Isso prejudica um pouco a atuação de Santoro, aparentemente amaldiçoado por personagens bizarros ou inexpressivos no circuito internacional. Mas não posso dizer, com todas essas modificações feitas por Frank Miller, que o imperador persa não seja um personagem interessante ou bem explorado. O filme tenta ser tão fiel aos quadrinhos quanto possível, e nosso compatriota se encarrega bem de seu personagem, dentro do possível. Verdade que as feições delicadas de Santoro, combinadas com os adornos extravagantes de seu personagem, tornam Xerxes um personagem notoriamente distoante do clima "macho" do resto do elenco, mas isso não chega a ser um problema. Xerxes é muito bem caracterizado como representante de uma cultura estranha e bárbara aos olhos dos gregos -- o único problema é que, daquele jeito, ele podia ser tudo, menos persa. Até a insistência em mostrá-lo como um "deus" é equivocada: embora os persas tivessem em relação ao seu rei um grau de submissão muito maior do que os gregos com seus governantes, um rei jamais era uma divindade. A idéia de um "rei-deus" era adotada pelos egípcios, por exemplo, mas não pelos persas, para quem esse título só se aplicava às duas grandes forças cósmicas, Ormuz-Mazda (a personificação do Bem e da Luz) e Arimã (o Mal e as Trevas).
Fora isso, há o inevitável componente político. Há poucos dias, o governo do Irã protestou contra o filme pela forma como os persas são representados. Uma medida desnecessária, pensei eu, já que a obra apenas reproduz a HQ e é visivelmente uma obra de fantasia, ainda que baseada em alguns fatos reais. Porém, depois que assisti ao filme, já não achei o protesto tão absurdo. Os espartanos falam em resistir ao que no fim do filme chamam de "misticismo e tirania", e dá para entender perfeitamente porque a teocracia iraniana teria, como se diz, "vestido a carapuça". Além disso, o discurso espartano gira sempre em torno de "liberdade", de uma forma que lembra muito as patriotadas americanas em tantos outros filmes de guerra. Acontece que, mesmo considerando apenas o que o filme mostra dos valores e costumes espartanos, ver o monarca de um Estado ultramilitarista praticante de eugenia, que anos depois ia disputar com Atenas a hegemonia na Hélade, falar em "liberdade" soa um tanto estranho. Com o perdão da comparação anacrônica, foi como ouvir Mussolini falar em liberdade. É claro que a "liberdade" não representava para um espartano o mesmo que significa para um ocidental de hoje, e não tenho muita certeza de que o público entenderá a diferença. Eu ainda não fui ao meu bom e velho Heródoto para conferir se realmente há essa ênfase no discurso de resistência à invasão persa, e certamente não posso esperar que um filme de ação se valha de uma precisão acadêmica ao tratar de conceitos. Entretanto, nestes tempos em que é tão fácil demonizar culturas alheias, um certo cuidado nunca será demais.
Dito isso, o que se pode dizer? O filme distrai, é visualmente instigante, bastante ágil e trata, bem ou mal, de um tema pouco explorado pelo cinema. Diverte? Sim, até certo ponto. Mas não é dos mais marcantes. Não achei grande coisa do original em quadrinhos, e isso não mudou quando ele foi transposto para a tela grande. O filme poderia ter sido feito de forma mais realista, e certamente tresanda a um modelo de masculinidade exacerbada que soa um tanto grotesca. De qualquer forma, vê-lo não chega a ser um desperdício. Como entretenimento, 300 cumpre sua função.
13 comentários:
Oi, concordo com você, o filme poderia ser um pouco mais realista e menos mitológico.
Mas, para as mulheres, vale ao menos pelos corpinhos escultores...
Tudo isso para dizer q o filme é mais ou menos?
Sr. Farias,
Adorei "300". Como sou um cavalheiro não discordarei do seu texto (muito bem escrito as usual).
Grande abraço, meu amigo.
Bele,
Talvez o filme tenha sido, em parte, feito para causar mesmo essa impressão no público feminino.
Caro anônimo,
Se você espera posts opinativos de uma frase, descacompanhados de argumentos, um blog chamado "Divagações" não é a melhor opção.
Sr. Trigueiro,
Não se sinta acanhado em discordar. Aliás, você poderia postar mostrando sua opinião. Que tal um debate entre blogs? :-)
Um grande abraço,
R.
Rapazola,
Convite aceito. Aguarde-me, Sr. Farias. Aguarde-me.
;-)
Grande abraço e um ótimo fim de semana,
Rapazola,
Post no ar.
;-)
Nossa...esse post rendeu hein!!!
Ah...tem uma coisa relacionada a 300 e toda sua "liberdade histórica": é um filme pipoca...nunca em momento algum teve a intenção de ser algo além disso. Quem quiser ver a história real que assista um documentário. Gosto muito de filmes neste quesito que primam pela qualidade estética é pela contemporaneidade do roteiro...filme pipoca não é tão fácil assim de fazer, maior prova disso foram aquelas comédias de adolescentes americanos que esgotaram-se em si mesmaas e não mostraram a que vieram. Saudades dos Pork's...Último Americano Virgem e filmes assim.
Além disso, mesmo que não fosse tudo isso já vale só pelo desfile de corpos sarados e sem efeito de computador...aliás essa era a melhor fidelidade real do filme.IUPIIIIII
Rô tem algo errado com sue blog. Toda vez que o abro abre-se tb uma janela, daquelas meio spam, do mercado livre.
Jaque, não há nada de errado com o blog. Abri-o aqui e nenhuma janela apareceu. Provavelmente é o computador que você utilizou que pode ser vítima de adware, uma das variedades de praga eletrõnica que infestam a Internet.
De qualquer modo, obrigado pelo aviso.
Um abraço,
R.
Mas Rô isso acontece quando eu abro do pc de casa e quando eu abro do pc do jornal. É muita coincidência...mas tudo bem!
Beijos
Rodrigo,
Concordo com você. Pois as pessoas do sexo feminino que assistiram o filme costumam ser unânimes nesse quesito.
Bjs Bele
oi Rodrigo
estávamos pensando em ver este filme no cinema
mas vc acaba de me convencer a ver em casa.
Detesto violência gratuita,
assim posso pausar de vez em quando para respirar... hehehehe
beijo, e até.
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