Folha de S. Paulo, 15/02/2006.
Vista como "raivosa" por representantes da esquerda, a nova direita cresce com a crise do PT e age como se chegasse a sua vez
Direita, volver!
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
De repente passou a ser bacana o sujeito, numa festa ou numa mesa de bar, rodopiar a taça de vinho e desfilar frases do tipo "essa canalha bolchevique do PT não sabe nem falar português", seguidas de elogios à atuação de George W. Bush no Iraque ou de incursões "teóricas" das quais a principal lição a ser retirada é que só é pobre quem quer.
Cada vez mais à vontade no país que se seguiu à estabilização monetária e, principalmente, ao tombo ético da administração petista, uma nova direita esbalda-se no Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva.
Foi-se o tempo em que a direita parecia se concentrar sobretudo na economia -cujo "bunker" é a PUC do Rio, hegemônica na área desde o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Com rosto mais "cultural", na imprensa, articulistas como Diogo Mainardi, da revista "Veja", Reinaldo Azevedo, da revista-site "Primeira Leitura", e Nelson Ascher, desta Folha, encarnam a renovação da tendência. São as versões atualizadas de intelectuais como o "decano" Olavo de Carvalho [leia entrevista na página seguinte] ou de polemistas como José Guilherme Merquior (1941-1991) e Paulo Francis (1930-1997).
Antes "oprimida" pela hegemonia cultural de esquerda -vigente no país desde pelo menos a década de 60-, a nova direita foi crescendo em desembaraço e afetação à medida que a esquerda, golpeada por crises, enfiava o rabo entre as pernas e se via representada por figuras duvidosas, como as do PT, anacrônicas, como Fidel Castro, ou patéticas, como o presidente da Venezuela, Hugo Chávez (é preciso reconhecer que o material é estimulante).
Para o pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) Marcos Nobre, identificado com a esquerda, o fenômeno "está apenas começando". Ele acredita que os novos arautos da direita se unem numa atitude "raivosa" e também num discurso sedutor. Mas é nas suas linhas mais sofisticadas, diz ele, representadas por nomes como o do economista Eduardo Giannetti, que mora o "perigo" maior.
Já para Reinaldo Azevedo, o perigo são os esquerdistas, que se mostram dispostos a sacrificar a legalidade, mesmo a democrática, em nome de um entendimento peculiar do que seja justiça social. "Eu fico com a legalidade. Nesses termos, eu seria da direita democrática". E acrescenta, provocando: "Se quiserem, no entanto, que eu defenda juros reais de 13% ao ano, podem tirar o cavalo da chuva. Essa direita é o Lula".
O poeta e tradutor Nelson Ascher, colunista da Folha, diz repelir rótulos ideológicos, mas considera que não é um equívoco ser chamado de "direita", se forem seguidas "as regras que aqueles que se denominam "de esquerda" usam para classificar opiniões diferentes". Para ele, "se a religião já foi apelidada de "o ópio do povo", o esquerdismo é o jeans da intelectualidade".
Marcos Nobre considera que o tom adotado por essa vertente revela uma espécie de identificação com o agressor. "Acho que eles apanharam tanto da esquerda, que dizem: "Agora é a nossa vez"." Ele vê nesse traço o reflexo de uma crença "revolucionária" da nova direita, que trataria de impor ao Brasil, pela primeira vez na história (segundo seu julgamento), um choque de capitalismo.
"A lógica é que eles se consideram a vanguarda de uma coisa nova no Brasil, que é o capitalismo. Por isso são tão raivosos", diz. Mas ele considera que há "um lado extremamente positivo, que é a consolidação da democracia. É uma direita que legitimamente pode mostrar sua cara."
A opinião é compartilhada em parte por João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). "Trata-se de fenômeno positivo para o ambiente democrático. Afinal, durante décadas, houve uma hegemonia quase incontestada do pensamento de esquerda. Assim, bastava empregar o tom "adequado" para ser considerado um intelectual "engajado", portanto, na posição "correta'", diz.
Mas ele vê problemas com os argumentos dos novos direitistas. "Hoje o que vemos predominar são comentários raivosos e ressentidos, como se os casos de corrupção do PT legitimassem a pilhagem do Estado brasileiro realizada por décadas pelos partidos políticos conservadores. E o nível intelectual? Não há nenhuma comparação possível com o alto calibre de [Mario Henrique] Simonsen, Roberto Campos e [José Guilherme] Merquior."
Luiz Felipe de Alencastro, professor de história do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne, também de esquerda, concorda com Castro Rocha e Nobre ao considerar que o governo Lula foi responsável pelo fortalecimento desse discurso.
"Razões para criticar não faltam", diz Nobre. "A atuação raivosa vem de antes. Mas no governo Lula é sopa no mel. Mistura tudo, até preconceito de classe."
Castro Rocha é mais duro com os petistas. "Em medida maior do que talvez desejássemos, a força do discurso da direita é uma conseqüência direta da crise política, que é especialmente uma crise simbólica. Ora, se um partido como o PT pôde fazer o que fez, então como impor uma barreira ética à voragem histórica da direita brasileira?"
E Giannetti, o "perigoso"? De cara, o economista, professor do Ibmec São Paulo, rejeita toda classificação desse tipo. "Isso é um cacoete intelectual brasileiro -achar que vai desqualificar o pensador atribuindo a ele um rótulo. A minha disposição é discutir problemas e idéias. Não acho que dê para resumir a complexidade de um pensador reduzindo tudo a um rótulo."
Ele, no entanto, critica a esquerda. "No Brasil, todas as pessoas que eu conhecia se imaginavam de esquerda, revolucionárias, ultraprogressistas, e no entanto a realidade é essa que está aí. Acho que essa história de as pessoas se imaginarem de esquerda no Brasil é que é um tremendo auto-engano. É muito gostoso ficar posando de esquerdista e achando que está com as idéias mais avançadas da sua época. Muitos intelectuais brasileiros nutriram durante muito tempo essa fantasia." "A esquerda no Brasil se confundiu muito com o populismo. Com a idéia de que existe um atalho indolor para o crescimento econômico."
A difusão de um novo discurso contrário à esquerda vai produzir mudanças no meio cultural? Reinaldo Azevedo gostaria, mas acredita que não. "Diretores de teatro e de cinema continuarão a pregar a revolução com o patrocínio da Petrobras, que nos arranca o couro com o seu monopólio, mas patrocina proselitismo ideológico para as classes médias mais ou menos intelectualizadas. No país em que se tem uma esquerda dessas, quem tem um olho logo vira direitista", diz.
Regime militar ainda é um estigma
DA REPORTAGEM LOCAL
A direita ameaça sair do armário, mas o problema é: com que roupa? Ainda é forte no país a percepção de que a farda militar de outros tempos lhe cai bem.
Mesmo seus mais notórios representantes traduzem essa dificuldade com a hesitação em assumir o rótulo. Embora a esquerda tenha forte tradição autoritária, décadas de regime militar no Brasil terminaram por criar uma relação quase automática entre direita e ditadura.
Não à toa, o filósofo Denis Lerrer Rosenfield [leia entrevista na página ao lado] repele a caracterização, para depois se dizer da "direita moderna". "As pessoas ficam identificando a direita com regime militar. Aí não dá, né?"
Um dos traços que unificam essa nova corrente, no entanto, é justamente a defesa das liberdades e dos direitos individuais. "Se ser de direita significa defender as liberdades, então sou de direita", diz Rosenfield. "E por liberdades quero dizer as liberdades políticas, de opinião, de expressão, econômica e direitos civis."
O colunista da "Veja" Diogo Mainardi acha difícil ser enquadrado na classificação de nova direita. Ele se diz apenas um antilulista. "Amolo o governo, só isso." O jornalista Reinaldo Azevedo, da revista-site "Primeira Leitura", embora aceite o rótulo "direita democrática", não quer ser confundido com uma direita genérica. O mesmo se aplica ao colunista da Folha Nelson Ascher.
DIREITA, VOLVER!
Para o filósofo Olavo de Carvalho, é hora de criar uma alternativa partidária realmente conservadora no país
"O povo brasileiro é maciçamente de direita"
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Talvez a obra mais conhecida do filósofo Olavo de Carvalho, 58, seja a edição do site Mídia sem Máscara ( http://www.midiasemmascara.org), há anos na rede para denunciar o que chama de "viés esquerdista da grande mídia brasileira".
Carvalho hoje escreve no "Diário do Comércio", órgão da Associação Comercial de São Paulo. Escreve à distância. Desde maio de 2005, mora em Richmond, a duas horas de Washington. É na capital americana que, duas vezes por semana, garimpa material para o livro "A Mente Revolucionária", em que pretende dissecar o pensamento moderno de esquerda. "Um grupo de empresários do Paraná me deu uma verbinha para eu terminar o livro", explicou.
Folha - O que aconteceu com a esquerda no Brasil?
Olavo de Carvalho - Para começar, eles criaram esse mito de que são santos, de que têm o monopólio da bondade humana. De repente, o Brasil inteiro vê que não é nada disso. É uma decepção tremenda, mas era óbvio que isso ia acontecer. Você não pode colocar um sujeito que é inteiramente analfabeto na Presidência, burro desse jeito, sem critério. Ele não sabe a diferença entre certo e errado, entre bem e mal, então é claro que ia ser essa sem-vergonhice.
Folha - A alternativa, então é...
Carvalho - O PSDB é que não é. O PSDB é um partido da Internacional Socialista que está comprometido com o globalismo de esquerda, com todos esses valores politicamente corretos. É a direita da esquerda. No Brasil, infelizmente, a política ficou reduzida a isso: uma luta entre a esquerda da esquerda e a direita da esquerda. Quem é conservador mesmo não se deixa enganar por PSDB.
Folha - Não há ninguém no PSDB que sirva?
Carvalho - Veja o Geraldo Alckmin. Ele aprovou uma lei que multa o rabino que ouse expulsar de sua sinagoga uma drag queen. Mesmo que ela tenha entrado lá só para provocar. Quem faz uma lei dessas não é conservador. É politicamente correto.
Folha - Como o senhor interpreta a versão petista de que é vítima de uma conspiração da direita?
Carvalho - O surgimento de um pensamento de direita, qualquer sinalzinho, já deixa esse pessoal aterrorizado: eles já se vêem todos na cadeia. Fica um negócio paranóico. Mas a verdade é que o pensamento conservador no Brasil ainda é uma raridade. Existiu em Joaquim Nabuco, em João Camilo de Oliveira Torres, em Minas Gerais, em Gilberto Freyre, em Pernambuco. Mas é pouca coisa. A tradição cultural do Brasil é toda de esquerda. Não há um movimento intelectual conservador. Eu acho que sou o primeiro cara que está tentando fazer isso.
Folha - Do jeito que o senhor está falando, parece que o Brasil é um paraíso da esquerda...
Carvalho - É até engraçado, porque o pessoal de esquerda vive dizendo que a burguesia cria seu aparato cultural e ideológico. Só que a esquerda convenceu a burguesia a financiar o aparato ideológico esquerdista. Durante a ditadura já era assim. As universidade eram todas de esquerda, as instituições culturais idem.
Folha - Será que a fraqueza do pensamento conservador não reflete a dificuldade de convencer alguém de que é bom conservar as coisas do jeito que são no Brasil?
Carvalho - O resultado do referendo sobre as armas, o apoio de parcela expressiva da população à pena de morte e outras indicações mostram que o povo brasileiro é maciçamente de direita no que se refere a cultura, moral, costumes. Mas, como só existem partidos de esquerda, acaba-se votando na esquerda. É hora de criar uma opção partidária de direita. Um verdadeiro partido conservador não tem de defender apenas o livre mercado, mas tem de defender um estilo de vida.
Folha - Qual seria o programa de um verdadeiro partido de direita no Brasil?
Carvalho - 1. Anticomunismo. Não queremos comunismo na América Latina. Tchau, tchau e bênção. Adeus, Fidel Castro; adeus, Hugo Chávez, não queremos nada disso; 2. Livre empresa e respeito à propriedade; 3. Moral judaico-cristã; 4. Educação clássica. As pessoas têm de ter os valores fundamentais da civilização; 5. A verdadeira liberdade de discussão. 50% a 50%. Equilíbrio entre as correntes.
Folha - Como é repudiar o comunismo, Cháves e Fidel, e ser favorável a um equilíbrio entre as corrente de direita e esquerda?
Carvalho - Uma coisa é ser de esquerda, e outra coisa, bem diferente, é essa tradição marxista, comunista. Isso tem de acabar. Porque se trata de ideologia genocida, criminosa.
A esquerda prepondera, diz Rosenfield
UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
No começo da entrevista, o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, 55, titubeou ao ser questionado se suas idéias são de direita. "Se for algo pejorativo, é um equívoco completo", disse. Depois, fez questão de procurar a reportagem para acrescentar que sim, é de direita. Mas que fique claro: ele fala de uma "direita moderna".
Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política", Rosenfield está entre os que vêem espaço para o surgimento de uma nova direita, desvinculada das idéias de um Estado totalitário e corrupto e identificada com a boa gestão administrativa e a defesa das liberdades.
A seguir, trechos da entrevista.
Folha - O sr. considera um equívoco ou um acerto suas idéias serem classificadas como de direita?
Denis Rosenfield - Se se trata de algo pejorativo, e, portanto, a pessoa está querendo me agredir, é um equívoco completo. No fundo, direita ou esquerda, hoje, são conceitos relativos. Não têm maior conteúdo ideológico. Mas o que ocorre é que, no Brasil, havia e há ainda uma preponderância do pensamento de esquerda marcado pela influência petista. Mas o PT no governo mostrou que essa esquerda não tinha idéia nenhuma. Frente a essa questão, se coloca a necessidade de uma direita moderna.
Folha - Como ela seria?
Rosenfield - Definiria assim: economia de mercado, Estado de Direito, democracia representativa, Estado menor e menor carga tributária. E acrescentaria um ponto fundamental: no mais amplo reino de liberdades. E isso não se confunde minimamente com selvageria ou com barbárie.
Folha - O escândalo do "mensalão" abriu espaço para essa direita moderna intensificar seu discurso?
Rosenfield - Certamente. Mas, para que esse discurso da direita moderna se fortaleça, ele precisa de uma bandeira ética, de defesa da moralidade. Identificar a direita com a corrupção é um despropósito completo. No Brasil, a questão da corrupção está vinculada a um outro problema que eu considero central: o tamanho do Estado e a questão dos impostos.
Folha - Mas não é mais "defensável" um Estado que dê sustento à população do que um Estado que deixe as pessoas ao deus-dará?
Rosenfield - Estou de acordo. Mas eu não estou defendendo a idéia de que o Estado enxuto vai deixar as pessoas pobres ao deus-dará. Digo o seguinte: vamos fazer um choque de gestão e ter outras idéias do ponto de vista de melhor atender os destinatários.
O que você coloca como questão, que eu acho muito boa, é o discurso. Mas temos que confrontar o discurso com a realidade.
Folha - Então, a crise abre um espaço para que o discurso da direita moderna seja mais ouvido?
Rosenfield - Disso estou convencido. O que me surpreende é que os partidos políticos ainda não tenham entrado nessa via. A crise do PT abre um espaço enorme para essa proposta que eu chamo de direita moderna.
Folha - E que não seja mais vista de forma pejorativa?
Rosenfield - Sim.
Folha - Sua primeira resposta, quando perguntei se suas idéias eram de direita, foi defensiva, dizendo que, se fosse pejorativo...
Rosenfield - Pois é, que poderia ser entendido como pejorativo...
Folha - Mas se eu tivesse perguntado a alguém se tais idéias são de esquerda, acho que essa pessoa não começaria se defendendo...
Rosenfield - Exatamente. Estou de acordo com você.
Folha - Isso pode se inverter?
Rosenfield - Acho ainda muito difícil. Se considerarmos as últimas eleições presidenciais, tivemos quatro candidatos de esquerda. Isso é único no mundo. Diria até patológico. Em nenhum lugar do mundo é assim. Aqui é. E por quê? Porque, aqui, todos dizem que ser de direita é pejorativo, né?
Mas podemos ter uma direita moderna identificada a um partido de centro. Uma direita moderna, atenta às questões sociais.
Folha - Em termos ideais, o sr. não concorda com que um Estado mais ausente deixa os "fracos" mais expostos ao domínio dos "fortes"?
Rosenfield - Isso sim. Estou de acordo com você, mas depende da função reguladora do Estado. É uma questão que se coloca.
Folha - Podemos dizer que a direita está saindo do armário?
Rosenfield - Se for uma direita moderna, vai saber sair do armário. Se não for, fica lá dentro. Porque as pessoas ficam identificando a direita com regime militar. Aí não dá, né? E deixa eu acrescentar uma coisa: se ser de direita significa defender as liberdades, então sou de direita. E por liberdades quero dizer as liberdades políticas, de opinião, de expressão, econômica e direitos civis.
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