Acabo de ler o capítulo X de Lições de Abismo, de Gustavo Corção. Tocou-me singularmente, e acho que a convivência com a Aurora é em grande parte a causa. Ele fala das lembranças da infância, mas não as próprias, e sim as que os outros guardam de nós. E assim me fez lembrar de todas as "testemunhas", como ele diz, da minha própria infância, e de como eu sou, agora, da de minha filha -- guardando aquilo que atiramos fora, os fatos que perdemos, um mundo de coisas que se apagam de nossas mentes. A cada foto ou registro que faço de Aurora nesta fase de sua vida, de apenas 3 anos e quase 10 meses, eu me pergunto se ela irá lembrar, e sei que provavelmente não vai. Vivemos uma espécie de grande prólogo, que mal é lembrado depois que o drama avança.
Transcrevo, que é coisa bela demais para ser tão-somente mencionada:
A morte dos mais velhos - tia Dulce, mamãe, papai, tio Afonso - amortece muito em nós essa idéia de ter surgido quando já ia em meio a tumultuosa conversação que é a história do homem. Lembro-me da aflição em que fiquei quando vi fecharem-se os olhos, da última testemunha de minha infância, a velha Cata? rina, que criara a mamãe, e que se obstinava em sobreviver. Morreu com oitenta e sete anos, velhinha, sequinha, e eu me achei despegado de tudo o que ficara para trás. Nunca me senti tão adulto, e tão só.
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Ah! a velhinha morta no seu berço
Com o terço na mão !
Sementes de ave-marias penduradas
Num galho murcho e curtido
Caído
No chão.
Nunca me sentira tão autônomo e tão sem mimmesmo. Catarina levava em seu caixão um monte de vida perdida - e era justo que levasse. Pois minha infância era mais dela do que minha. Era o seu tesouro. O que eu ia atirando fora ela ia guardando . . . ah! a velhinha guardadeira ! É claro que não era para si mesma que ela apanhava no chão as lembranças caídas . Era para todos? para a serventia geral da casa. Para o que desse e viesse. Guardava meus risos como guardava os botões, porque era preciso que alguém guardasse o que todos perdiam.
Expulso de mim, morava nela a minha infância, inteira, intata, verdadeira. Atrás da testa engelhada, eu continuava a correr em domingos de sol. Sua alma era um
baú enorme onde cabia tudo. Cabiam papagaios soltos, barra-manteiga, chicote-queimado. Lembranças desbotadas, suavemente amarelas . Doenças. Tombos. Você se lembra, Catarina? Catarina está ficando velha, mas não esquece. Velha por fora, cada vez mais velhinha, mas por dentro cada vez mais louçã,
mais clara, mais lisa.
Ah! a velhinha crestada, queimada
pelo seu próprio coração. Queimada viva!
As rugas da alma foram subindo docemente,
bolha por bolha,
à tona da pele engelhada
(de renda e de folha)
numa transfiguração !
Naquele tempo eu não sabia (juro que não sabia!) que estava dentro dela um mundo imenso, um mundo de prodígios - um mundo que não era este mundo - em que eu continuava criança a correr numa lembrança inextinguível. Um mundo fora e dentro deste mundo. Andando pela casa. Varrendo. Indo e vindo. Familiar. Ao meu alcance. Catarina ! Eu chamava, e vinha um mundo. E atrás, um mundo ainda maior ! O mundo anterior; em que eu não fui. O mundo em que eu não era...
Seu corpo seco, enxuto, murcho,
era um cânhamo torcido,
esticado e lançado sobre vales profundos.
Sua mão cerzia os anos.
Sua alma era um nó entre dois mundos.
Minha infância - eu já disse - era mais dela do que minha. Sem que ela reclamasse, é claro, esse direito de reter. Guardava para o que desse e viesse; para servir.
E agora?
Quando viva, minha vida era suspensa e gratuita. E eu não sabia! Estava nela o meu segredo, o sinal, a explicação, o nexo, e a mistura - sim, a composição metafísica de ser e de não-ser de onde eu nascia continuamente. Os dois mundos. Os dois mundos se casavam, se confundiam, e eu vivia a nascer, a crescer, a jorrar inextinguivelmente.
E agora?
Catarina! Catarina!! Ca-ta-riii-na! Você não ouve, criatura? Você ficou surda? ... Catarina, onde é que você botou minha infância?