sábado, dezembro 28, 2013

Colin Wilson, socialismo e incertezas

No último dia 5, meu autor favorito morreu. Lamentavelmente, eu só soube esta semana, uma vez que Colin Wilson nos deixou no mesmo dia que Nelson Mandela. Enquanto o mundo inteiro chorava a previsível morte do líder sul-africano, na Cornualha, o bom e velho autor de joias como O Outsider  e O Oculto terminava seus dias e o silêncio imposto por um derrame em 2012. O mundo ficou duplamente mais pobre neste dezembro.


Em homenagem a ele, subverti ainda mais minha já caótica e impontual lista de leitura e baixei no Kindle um ensaio pouco conhecido dele, The Decline and Fall of Leftism. Foi uma das raras ocasiões em que Wilson deixou de lado a ficção-científica, a criminologia, o sentido da existência, a crítica literária, a parapsicologia e o misticismo para se dedicar a um tema político. Não sabia de quando era o livro, mas pareceu-me ser no mínimo dos anos 70 (vejo agora que é de 1989, fim da Era Thatcher). Típico do estilo wilsoniano, o ensaio parte de uma análise geral e depois envereda pela análise de figuras históricas, os escritores Jack London e B. Traven,  que ilustram o ponto de vista do autor.

E que ideias seriam essas? Basicamente Wilson, um inglês, vê o Estado de bem-estar social como uma instituição que favorece a acomodação e se baseia numa premissa socialista equivocada de que a eliminação da miséria traria a felicidade e a plena realização do potencial de uma sociedade. Nunca o homem aplica tão bem as próprias energias e talentos como quando trabalha para si mesmo, diz ele, e é justamente isso que o socialismo acaba prejudicando. As consequências são a estagnação e o tédio -- argumentos, aliás, fáceis de achar na boa literatura conservadora. No entanto, e isso é importante, quando analisa London e Traven, homens que viveram na transição do século XIX para o XX, Wilson nem de longe os condena como idealistas ingênuos. Ele reconhece as mazelas que eles enfrentaram e os níveis extremos de injustiça com que convivivam, e acha perfeitamente natural que vissem no socialismo uma forma de redenção social. O que eles não tinham era a experiência de ver sistemas socialistas em ação, ao passo que tinham sensibilidade moral o bastante para reconhecer que algo precisava ser feito. Embora essa fosse uma percepção frequente entre intelectuais do século XIX (por exemplo, Dickens), que denunciavam os terríveis problemas sociais de mil maneiras, o socialismo atraía por oferecer uma análise sistematizada e uma solução geral  para eles. Sendo homens de grande energia e que haviam sentido na carne como o mundo podia ser cruel -- experimente-se uma olhada na biografia de London para entender bem isso --, era compreensível que adotassem uma doutrina que prometia mudanças radicais. Nunca é demais lembrar que, numa época em que crianças e mulheres eram exploradas em jornadas de trabalho desumanas, movimentos operários eram combatidos com tropas, direitos trabalhistas eram poucos ou inexistentes e setores da classe alta se autocongratulavam com o darwinismo social, qualquer pessoa com um mínimo de senso de justiça e sem muito a perder provavelmente gastaria pelo menos alguns minutos considerando alguma das propostas de reforma então correntes. Isso, claro, descontando os que seriam atraídos por motivos mais pessoais e menos altruístas que fariam a alegria do Dr. Freud, como seria o caso de Traven.

Seja como for, o que me chamou a atenção foi que Wilson apresentou uma ligação entre suas ideias a respeito da importância da autorrealização e o sistema social em vigor. Sem exatamente se basear nos clichês da mão invisível ou da liberdade como valor supremo desassociado de outros tantos, ele reafirma uma noção simples e intuitiva de forma bem interessante.Comentando a respeito do socialismo de George Bernard Shaw, ele diz: 

O que Shaw parecia não ter, como um socialista, era qualquer  insight psicológico sobre o problema da liberdade humana. Ele entendia suficientemente bem de economia para ver a falácia do Marxismo. Ele entendia suficientemente bem de história social para saber que o verdadeiro pecado contra a luz nào é o capitalismo, mas a pobreza. Mas ele não conseguiu ver que, nesse caso, o objetivo de qualquer sistema político deve ser a abolição da pobreza, não do empreendimento individual.

Noutras palavras, os socialistas estavam jogando fora o bebê junto com a água do banho. Na ânsia de combater os muitos e graves males do capitalismo da época -- males esses, nunca é demais lembrar, ignorados ou minimizados por muitos de seus opositores conservadores --, acabavam combatendo também os elementos positivos do sistema, os quais eram perfeitamente adequados às inclinações naturais do ser humano: o autointeresse tão lembrado por Smith, a possibilidade de ascensão social e seus estímulos. Ao prometer garantias e mais garantias econômicas, e desfazendo o apelo da ascensão, o que se abria era a estrada para a acomodação, para o desinterese, para o feijão-com-arroz diário nas atividades da vida. E isso parece coerente com o destino que as sociedades comunistas de fato encontraram ainda no século XX.

Era isso o que socialistas de todas as épocas tinham em mente? Era esse o seu objetivo? Certamente que não. Nivelando por cima, é muito difícil imaginar que uma pletora de indivíduos brilhantes que aderiram a essa causa -- e falo aqui do marxismo, especificamente -- quisessem viver numa sociedade sem livre iniciativa ou onde o Estado vigiaria os seus passos. E as críticas que faziam às injustiças de seu tempo, e muitos fazem até hoje, eram frequentemente certeiras e úteis. No entanto, diz Wilson, eles não levavam as suas premissas até as últimas consequências, nem tinham como testá-las na realidade; eram idealistas, românticos até. Eu diria ainda que nobres, na maior parte dos casos. Mas, se eles não pensaram direito, nós, com o benefício da retrospectiva, temos a obrigação de fazê-lo.   

***

É engraçado falar de Wilson defendendo tais posições, mas, ao mesmo tempo, elas são coerentes com o que ele sempre defendeu. Um admirador de Gurdjieff, ele sempre defendeu que nós, humanos, vivemos como que "dormindo", deixando-nos levar pela rotina, alheios ao nosso verdadeiro potencial. Em umas poucas ocasiões, no entanto, temos "experiências-clímax" (peak experiences), nas quais esse poder intocado se manifesta. Isso tanto pode significar um momento de grande inspiração artística ou a produção de fenômenos ditos paranormais, ou seja, inclui desde Coleridge e Mozart até Donald Dunglas Home e grandes iogues. Bastam o estímulo certo, a ocasião correta e, normalmente, uma intensa concentação. Daí para uma valorização do indivíduo como um tesouro é curta a distância.

No entanto, se o potencial individual é tamanho, pode-se inferir que a responsabilidade individual também seja? Depois de assistir a uma acalorada discussão entre amigos, todos pós-graduados, a respeito de mais um choque de classes no Brasil, em que vi reproduzidas as posturas clássicas de esquerda e direita a respeito da responsabilidade social e individual, fico aqui pensando a respeito. Um conciliador por temperamento, sempre me chama a atenção como muitas vezes as pessoas se polarizam em torno de ideias que não são excludentes. No caso, que a imagem de jovens de pele escura e com todas as marcas da periferia, em grupo, falando alto e entrando em massa num shopping, evocou a perspectiva de que se tratava de um arrastão entre lojistas e frequentadores, levando a um certo pânico; que esse mesmo senso de exclusão desses mesmos jovens pode perfeitamente lhes inspirar certo prazer não só em "invadir" espaços vistos como privilegiados, mas também, no caso de alguns, a levá-los a cometer delitos de verdade (se isso parece automaticamente improvável e preconceituoso para você, sugiro uma estágio em escolas na periferia das grandes capitais do Sudeste); e, finalmente, que o grande problema em torno dos "rolezinhos" é um grande mal-entendido que não se resolve com acusações e reproches morais à "classe média" -- hoje muito mais atacada, parece, pela esquerda brasileira do que os burgueses clássicos -- ou aos jovens em questão. Isso não exclui que preconceitos de classe, de um lado, e um prazer perigoso na autoafirmação agressiva, de outro, existam; mas que, em conversas de pessoas inteligentes e cultas, essas coisas pareçam assim, é curioso, para não dizer preocupante. Talvez a resposta seja que, no fim, éramos um bando de acadêmicos discutindo um fenômeno sem grandes preocupações empíricas... Mas a maioria dos nossos posicionamentos políticos não são adotados assim? E se o são, qual o valor real das belas ideologias que construímos ou defendemos apaixonadamente?

Sou cético dos céticos convictos. O ceticismo é uma boa defesa, um filtro necessário, mas em si não realiza muita coisa. É uma crença negativa, afinal, e o que forma o mundo são crenças positivas, isto é, que afirmam alguma coisa. Não por acaso, meus conhecidos mais ideologizados sempre me criticaram por meu "em-cima-do-murismo" em várias questões: aquele que berra apaixonadamente que "X é a solução" parece mais convincente do que o que diz "X tem essa vantagem, mas está errado aqui e ali; já Y nos oferece esta outra contribuição, que fica maior ainda se adicionarmos esta parcela de Z". Este último é possível na academia, mas também fica muito mais restrito. E se entre os elementos que informam sua análise houver alguns menos aceitos (experimente, por exemplo, falar de uma perspectiva espiritual em um debate político tradicional), ele fica perdido. Sínteses dão trabalho, requerem estudo, esforço, reflexão, testes, e uma boa dose de interlocução e debate; pacotes prontos são mais fáceis de digerir. O que fazer, então, quando se está naquela fase em que os pacotes já não convencem, mas a síntese ainda não está pronta, se é que um dia estará? 

É justamente como me vejo agora. Mas, enquanto a solução não vem, sempre se pode ir pensando alto...    
***
[Para uma apreciação crítica da obra de Wilson, mas por parte de um admirador, cf. http://aeon.co/magazine/world-views/colin-wilson-the-permanent-outsider/.]  

terça-feira, dezembro 24, 2013

Escrevendo boa prosa

É estranho sugerir um livro americano para questões relacionadas à línguagem, mas a abundância desse gênero em inglês é tamanha, que acaba valendo a pena. Chamou-me particularmente a atenção o fato de haver um capítulo sobre a escrita de ensaios, coisa que não é tão comum. Então, compartilho: http://avaxhome.cc/ebooks/cultures_languages/1400069750.html.


Mas nunca é demais sugerir um dos melhores e mais completos livros já escritos em português sobre esse assunto, do bom e velho Othon M. Garcia, presença perene nas boas livrarias e fácil de encontrar em sebos:





As Cartas de Arthur Schlesinger Jr.

Do NY Times: http://www.nytimes.com/2013/12/22/books/review/the-letters-of-arthur-schlesinger-jr.html?ref=books&_r=0&pagewanted=all


A Historian in Camelot

‘The Letters of Arthur Schlesinger, Jr.’

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Most intellectuals are attracted to power, but none with less ambivalence than Arthur Schlesinger Jr., the brilliant historian of the New Deal who became the quasi-official chronicler of the Kennedys. Schlesinger was born into an American aristocracy in its prime — the Eastern liberal intelligentsia. He was the son of an eminent Harvard historian and grew up apparently knowing everyone. He met his first Kennedy (sister Rosemary, before her lobotomy) when he was 14, at a Christmas party in 1931. It was natural, maybe even inevitable, that Schlesinger, while serving as an intelligence officer in Germany at the end of the war, would be invited to dinner “at the palatial mansion shared by George Ball and Ken Galbraith.” In Washington after the war, the young author of “The Age of Jackson” had a place at the table of Georgetown dinner parties thrown by the columnist Joseph Alsop, where he met Democratic Party royalty — Averell Harriman (“quite favorably impressed by him”), Franklin D. Roosevelt Jr. (“looks astonishingly like his father and has adopted many of his mannerisms”) and John F. Kennedy (“seemed very sincere and not unintelligent, but kind of on the conservative side”).
John F. Kennedy Presidential Library (1962)
Arthur Schlesinger Jr. with President Kennedy.

THE LETTERS OF ARTHUR SCHLESINGER, JR.

Edited by Andrew Schlesinger and Stephen Schlesinger
Illustrated. 631 pp. Random House. $35.
In their world, the identity of Yale’s next president was deemed of national significance, meriting a long, urgent letter to Harriman in which Schlesinger proposed various candidates and shot down others. In 1951, he sent the White House a copy of a quickie book that he’d written with Richard H. Rovere, on the showdown between Truman and Gen. Douglas MacArthur, and received an appreciative reply from the president himself. His letters throughout the 1950s to Adlai Stevenson carry the frank authority of an insider. Schlesinger spoke in the name of “the liberals” with all the confidence and weight of that definite article, a group with political pull at the highest levels — the commanding brain of the country’s ruling coalition. In May 1960, he wrote to Stevenson (just before abandoning him for Kennedy, who would bring Schlesinger into the White House), “If Jack is nominated as the candidate of the liberals as well as of the Eastern organizations, it will lay the best possible foundations for a vigorous and high-minded campaign in the fall.”
A world where politicians and writers mingle on (almost) equal terms brings distinct advantages. Schlesinger’s political intelligence in his correspondence is excellent, the level of discourse and purpose high, the sense of responsibility as keen as the sense of fun. He is fundamentally comfortable with himself and his world, doesn’t waste energy fighting against institutions whose essential rightness he never questions, nor does he suffer from the intellectual’s usual neuroses, the resentment and self-contempt that come with being ignored. He’s always getting on with the business of being a ­participant-observer to history.
Perhaps as a consequence, there’s very little sense in “The Letters of Arthur Schlesinger, Jr.,” selected by two of his sons, of Schlesinger as a private man — no love letters, other than a sublimated correspondence with the highborn and beautiful liberal activist Marietta Tree (“They were never lovers,” the editors note, “despite the words of endearment”). Back in Cambridge from a vacation on the Cape, he tells Tree: “It was really an extremely good month — relaxing, amusing and generally beneficial. I did very little work, but got caught up on sleep, sun, swimming and my children. And there were a large number of pleasant people about. The latest to enter our lives was Montgomery Clift, the actor, who turns out to be a nice, confused, aspiring and quite likable person.” When Schlesinger writes about himself and his friends, the results are often stiff and a bit smug, without psychological insight, which may be the price of the sense of belonging.
The best letters — and there are many — come from the typewriter of the public Schlesinger, the fighting liberal, especially when he’s jousting with a provocative antagonist like William F. Buckley (“You remind me of my other favorite correspondent, Noam Chomsky”) or, even better, arguing a matter of principle with a friend at the breaking point. The Vietnam War, which shattered the New Deal coalition, produced unsparing letters between Schlesinger, who became a vehement opponent of the war, and old friends like Alsop and Henry Kissinger, as well as a remarkable exchange with Schlesinger’s longtime liberal ally, Vice President Hubert Humphrey, during the 1968 campaign. “Don’t overrate yourself, Arthur,” Humphrey wrote in July, shortly before the disastrous Democratic convention in Chicago. “No one’s trying to blackmail you or anyone else into coming over to support my candidacy. On the basis of your earlier and more mature liberal convictions, you ought to be supporting me, but undoubtedly something has happened in your life that has made you angry and bitter.”
“Something” was the assassination, one month before, of Schlesinger’s friend and hero Bobby Kennedy. But Schlesinger’s reply to Humphrey elevated the argument above personal feelings to the realm of conviction: “If you do not understand and will not recognize that some of your old friends might oppose your candidacy on grounds of principle — because they sharply dissent from the position you have taken on Vietnam — then you have lost your own sense of reality and are in deep trouble.” A few weeks later, he admitted to Reinhold Niebuhr: “The murder of Robert Kennedy terminated my interest in the campaign, and perhaps in American politics for some time to come. Hubert seems to me a burnt-out case, emasculated and destroyed by L.B.J. and unlikely ever to become a man again.”
Through the decades, on issue after issue, Schlesinger’s liberal values and intellectual clarity stood him in good stead — his implacable hostility to Communism and McCarthyism, his skepticism about the invasion of Cuba, his opposition to the war in Vietnam, his prescience about presidential abuses of power, his critique of multiculturalism, his fear of a quagmire in Afghanistan. But he had a major blind spot, which started with his nearly uncritical devotion to the Kennedys (their intelligence, their style, their will to power) but didn’t end there. The world of “the liberals” was social as well as political — sparkling dinner parties at Hickory Hill, lunches at the Century Club, summers on the Cape. Robert McNamara, being a Kennedy man, was granted membership, and upon his departure from the Pentagon in 1967, at the height of the war for which McNamara bore so much blame, Schlesinger wrote, “You have been one of the greatest public servants in American history, and your departure from the government is an incalculable loss to this nation.” But for Lyndon Johnson, the vulgar and uneducated Texan, whose liberal achievements on race and poverty far surpassed Kennedy’s, the Schlesinger of these letters has utter contempt. (“The Passage of Power,” the fourth volume of Robert Caro’s great Johnson biography, shows just how far the Kennedys and their men took the humiliation of Johnson, and at what cost to Kennedy’s administration.)
Membership in an aristocracy that for so many years enjoyed proximity to power left Schlesinger cut off from public feeling, and unprepared when the reaction came in the form of right-wing populism. After 1968, his political judgment became unmoored. In 1972, when scandal forced Thomas Eagleton from the Democratic ticket, Schlesinger wrote to Marietta Tree: “I am particularly confident that, if nothing else, Nixon’s personal entrance into the campaign will begin to reverse the tide. In any case, I am sure things will be much closer than they appear at present. After all, with all McGovern’s troubles, the party is in a much better situation than it was after Chicago four years ago.” Nixon went on to win in one of the biggest landslides in American history. In 1976, Schlesinger refused to vote for the insufficiently liberal and excessively religious Jimmy Carter, imagining that what Americans wanted was a return to the New Deal when in fact the opposite was true. In 1980 he supported Ted Kennedy’s destructive insurgency, then John Anderson’s hopeless third-party quest, oblivious of the incoming conservative tide. “I really don’t understand why you are so agitated about Reagan,” Schlesinger wrote to his best friend Galbraith on the eve of the epochal 1980 election. “I am sorry to see people like you fall for the Carter cartoon of Reagan as the Great Satan.”
These letters leave me admiring Schlesinger without ever really knowing him. I came of age when “liberal,” stripped of the definite article, became a term of abuse and a label to be avoided. Schlesinger’s correspondence arrives from that ancient era when eggheads instructed presidents and, not without an entry fee, were admitted into the inner sanctum of power.
George Packer, a New Yorker staff writer, is the author of “Blood of the Liberals” and, most recently, “The Unwinding: An Inner History of the New America.”