sexta-feira, novembro 29, 2013

Polarização e incivilidade

Um fenômeno que tem me incomodado. Os frutos amargos disso já se veem nos EUA, mas a coisa tem chegado aqui também. Vejo no Facebook, entre meus contatos, colegas e até amigos entrando nessa onda. Toda acusação contra o "inimigo", seja na forma de texto ou meme, é verdadeira a priori; enquanto isso, acusações contra sua facção favorita é sempre calúnia e perseguição. Parte-se do princípio de que todos somos obrigados a apoiar o lado da "verdade", ou nos calarmos; e quem não é parte da "solução", só pode ser do problema. E viva o pensamento em clichês e a "crítica" de manada, a vitimização perpétua, o maniqueísmo essencialista. Não importam tanto as instituições, mas contra quem elas são usadas; a Polícia, por exemplo, sempre terá razão se o acusado for um oponente, e será sempre serva do Establishment mal intencionado se o acusado for um aliado. Qualquer versão díspare ou dúvida levantada é "manipulação", seja do Partido da Imprensa Golpista (PIG) ou da mídia chapa-branca. E tome "isenção"  e "pensamento crítico", sempre alimentado nas mesmas fontes, nas mesmas premissas, e invariavelmente com os mesmos resultados. A verdade não pode ser eclética, o mundo não pode ter várias cores, os problemas não podem ser complexos... Enquanto isso, na vida real, o mundo segue pobre de boa vontade, instrução e -- palavra antiquada e risível -- amor, até. Em vez disso, incivilidade, propaganda, superficialidade e ódios articiciais cultivados online. É essa a tão falada "conscientização"? O tipo de cidadania que queremos?

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Pedro Doria

Tempo de radicais

O diálogo político se tornou impossível. Ninguém mais busca o meio termo. E parte da culpa é da internet.

O incômodo é visível. Em sua coluna na Folha de S. Paulo, o veterano jornalista Luiz Caversan anunciou que pretendia tirar férias de Facebook. O radicalismo das pessoas na rede está intolerável. Em um artigo recente, Frei Betto foi outro a se queixar dos radicais à esquerda e à direita. Cá no GLOBO, ontem, Ricardo Noblat desdenhou do país onde, on-line, “se torce apenas pelo cordão vermelho ou pelo cordão azul”. Míriam Leitão foi uma das primeiras, uns domingos atrás. Os radicais, em sua opinião, pioram a qualidade do debate. A polarização política é um fenômeno muito mais nocivo do que parece. Não é um fenômeno apenas brasileiro. E, não à toa, coincide com a popularização da internet. A tendência, aliás, é de que piore.
Em Israel, a esquerda foi sufocada e o governo de direita se radicalizou como nunca na história do país. Na Espanha, da virada do século para cá, o espaço de diálogo entre eleitores do socialista PSOE e do PP praticamente se extinguiu. Idem nos EUA, onde republicanos e democratas não se entendem desde o dolorido embate eleitoral que culminou com a questionável eleição de George W. Bush, em 2000. Este período, entre finais dos anos 1990 e o início da década seguinte é marcado pelo surgimento dos blogs e, com eles, as caixas de comentários. A partir daí, o crescimento das redes sociais. Não há coincidência.
Polarização não ocorre apenas quando o centro desaparece. A coisa é mais complexa. É natural que todos tenhamos paixões por certos temas. Pode ser o casamento gay para um, educação para outro, política econômica na cabeça do terceiro. Duas ou três questões costumam nos ser caras. Para as outras, na maioria das vezes somos ambivalentes, no máximo simpáticos a uma opção.
Quando o ambiente se polariza, porém, as pessoas se alinham a um ou outro grupo ideológico. Sentem-se na obrigação de defender até aquilo que não lhes é caro. O resultado é que as possibilidades de diálogo desaparecem. Afinal, quando tudo é muito importante, ninguém cede. Acordos tornam-se inviáveis.
Jogue “polarização política” no Google, porém, e poucos artigos científicos aparecerão. O tema mais definidor da política brasileira no momento é pouco estudado. Talvez porque, polarizadas, as pessoas que se interessam por política andam mais preocupadas em derrotar o outro lado do que dar um passo atrás e perceber que há algo de errado.
Nos EUA, onde o número de cientistas é inacreditável e tudo se estuda, já há pistas fartas. A primeira é que, para a maioria das pessoas, nada mudou. A população continua onde sempre esteve, não se radicalizou. Quem se radicalizou foi o pequeno grupo de eleitores que mais acompanha política. Como é para este grupo que políticos costuram seus discursos, também eles tornam-se mais radicais. Um estudo do professor Markus Prior, da Universidade de Princeton, avaliou se houve mudança na imprensa nas últimas décadas. Não a descobriu na imprensa tradicional: a cobertura dos fatos, nos EUA, se dá por um ponto de vista de centro. Nas páginas editoriais há uma tendência ligeira à esquerda, mas pouca. Não é assim, lá, para a imprensa que surgiu mais recentemente: canais a cabo de notícias, por exemplo, além de sites e blogs. Aí é tudo extremo, à direita ou à esquerda.
A internet cria o que o ativista Eli Pariser, autor do livro The Filter Bubble, chama de bolha. Lá, as pessoas procuram apenas aqueles sites onde lerão o que reitera suas crenças. Quando comentam em comunidades nas quais todos concordam, só há uma maneira de se destacar. Ou seja, sendo mais puro ideologicamente.
Na opinião de Pariser, aquela que já é uma tendência humana é amplificada pela maneira como a internet contemporânea funciona. Facebook e Google aprendem com aquilo que curtimos, clicamos, lemos, comentamos. Como querem nos ajudar a encontrar o que nos interessa, mostram mais do mesmo. E mais do mesmo é a reiteração da bolha. Lemos tanta gente com quem concordamos que o diálogo com os outros vai ficando mais difícil.
É uma febre. Depende de cada um escolher alimentá-la ou buscar o diálogo com quem discorda.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/tecnologia/tempo-de-radicais-10880244#ixzz2m3XpvZJF 
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domingo, novembro 03, 2013

George Pérez no Brasil

A década de 80, a da minha infância, foi uma época muito feliz em certos aspectos artísticos. Um foi a música, outro foi o dos quadrinhos. George Pérez e seu colega Marv Wolfman marcaram minha vida com alguns dos melhores quadrinhos que tive oportunidade de ler: histórias densas, com personagens multidimensionais, com conflitos realistas, tudo empacotado numa arte belíssima. E agora descubro que Pérez, além de um grande artista, também tem uma senhora veia crítica. Thanks, George!


http://oglobo.globo.com/cultura/george-perez-desenhista-de-crise-nas-infinitas-terras-faz-um-balanco-de-40-anos-de-quadrinhos-10645082

O GLOBO, 02/11/2013:

George Pérez, o desenhista de ‘Crise nas infinitas terras’, faz um balanço de 40 anos de quadrinhos

Ícone das HQs, ele virá ao Brasil para festival em BH

Rodrigo Fonseca

Seja herói ou vilão, todo aquele que é amarrado pelo laço da Mulher-Maravilha é obrigado a falar a verdade, doa a quem doer, e George Pérez, o responsável pela revitalização editorial da amazona nas HQs da década de 1980, aprendeu com ela o valor de ser íntegro. Por isso, o desenhista e escritor nova-iorquino de origem porto-riquenha, que vem ao Brasil no dia 15, para participar do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, diz sem dó:
— Os quadrinhos deixaram de se preocupar em construir uma mitologia e passaram a existir apenas para ceder matéria-prima para o cinema e os desenhos animados. Não se criam mais personagens por razões artísticas. Hoje, os gibis são criados por interesses monetários na indústria audiovisual. É por isso que, há 20 anos, eu parei de ler HQs, embora ainda viva delas — admite Pérez ao GLOBO por telefone, de sua casa, em Orlando, na Flórida.
Lá ele se recupera de uma cirurgia na retina, a tempo de viajar para BH, onde fala no dia 16 no FIQ (evento sediado de 13 a 17 de novembro no Espaço Cultural Serraria Souza Pinto), comemorando seus 40 anos de carreira. Mas suas palavras niilistas podem desapontar os fãs brasileiros. Sobretudo quem, há duas semanas, desde o anúncio das atrações do FIQ, se estapeia por uma vaga em seu colóquio, atrás de um autógrafo do artista responsável por fenômenos de venda como “Crise nas infinitas terras” (1985).
— Atualmente não se vê mais nenhum personagem de HQ sorrir. Tudo é sombrio, sem leveza. Até o Super-Homem perdeu sua inocência — lamenta Pérez, que contabiliza em seu currículo quatro Eagle Awards, prêmio inglês dado a quadrinistas de verve autoral.
Hoje um senhor de 59 anos, engajado em participar das peças do grupo de teatro comunitário de sua vizinhança, ele vive com a instrutora de dança Carol Flynn, que policia os hábitos do marido para controlar seu diabetes e o arrasta para os eventos onde apresenta suas coreografias. Entre os amigos de Carol, poucos sabem que Pérez foi um artista de rentabilidade milionária para a editora DC Comics, nem que ele foi o responsável por fazer da série “Os Novos Titãs” um rival comercial para os gibis dos X-Men de 1980 a 1984. Nessa época, deu forma a heróis que ficaram célebres, como Cyborg e Asa Noturna.
— O que mais me impressionava em Pérez era seu detalhismo e a maneira como ele representou o início do processo de erotização da editora DC Comics — diz o cineasta Claudio Torres (diretor de “A mulher invisível”), fã de HQs. — Nos Titãs, por exemplo, seu Asa Noturna dormia com a gostosa da (heroína alienígena) Estelar, ambos pelados, o que não era nada comum nos gibis de linha dos anos 1980.




Realismo sem estilização
À frente dos Titãs, Pérez desenvolveu um estilo próprio, que importou para sua experiência posterior na Marvel, em 1998, ilustrando “Os Vingadores”.
— Ele é herdeiro de uma estirpe de desenhistas de traços clássicos, que tentam seguir um modelo mais realista e menos estilizado, como José Luis García-Lopez e Neal Adams. E tem uma capacidade invejável de retratar cenas com um número de personagens absurdamente grande, sem descuidar dos detalhes — explica o pesquisador Sidney Gusman, editor do site “Universo HQ”, leitura obrigatória no setor.
Mais cultuado quadrinista do Brasil, Lourenço Mutarelli resume em uma palavra — “Impressionante!” — a estética de Pérez, ao vasculhar os desenhos feitos pelo americano para a saga “Crise nas infinitas terras”.
— É muito difícil para um quadrinista harmonizar o uso de cor em um desenho tão cheio de elementos quanto o dele. Mas Pérez encontra um equilíbrio no excesso. E surpreende ver como ele combina vários planos em um mesmo quadro, o que dá a seu desenho multiperspectivismo — elogia Mutarelli.
Em 1985, a fim de comemorar os 50 anos da DC, Pérez e o roteirista Marv Wolfman (seu parceiro em “Os Novos Titãs”) tiveram a ideia de desenvolver uma saga que pudesse zerar toda a cronologia da editora, a partir da chegada de um vilão, o Antimonitor, capaz de destruir universos com uma energia chamada antimatéria. Assim nasceu “Crise...”, cujo êxito abriu precedentes para que a DC investisse em projetos mais ousados como “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, e “Watchmen”, de Alan Moore, e topasse reformular as origens de seus maiores heróis, dando a Pérez o comando da nova série da Mulher-Maravilha, em 1987, que, de cara, virou cult nas bancas.
— “Crise...” foi uma desculpa que dei à DC para ter a oportunidade de desenhar todos os super-heróis que cresci lendo de uma só vez, indo de clássicos de guerra como o Sargento Rock a figuras pós-modernas como os Homens-Metálicos, passando pelo Batman. O sucesso de vendas fez daquela experiência algo histórico e me deu passe-livre para criar — orgulha-se Pérez, que, até hoje, desenha à mão, usando computador apenas para colorir. — Gosto do prazer de desfilar a ponta do grafite sobre o papel.
Há um ano, ele rompeu os laços com a editora DC Comics, por divergências criativas na autoria da revista “Superman”, e sua jornada de trabalho anda mais lenta. Ele também está afastado da Marvel, onde profissionalizou-se em 1973 emprestando seu lápis aos gibis do vigilante Deathlok. Atualmente, sua rotina anda restrita à feitura de capas para o Boom Studios, onde trabalha desde julho, e para o qual desenvolve uma minissérie, “She-Devils”, sobre um bando de guerreiras místicas. Ninguém sabe ao certo do que tratará a nova empreitada de Pérez. Mas, na indústria, ela já atiça a expectativa de lucros das gibiterias dos EUA.
— Essa série vem de um fanzine que criei nos anos 1970. Como eu não tenho mais compromisso com a linha editorial da DC ou da Marvel, posso usar a liberdade criativa na plenitude para falar de mulheres poderosas que se deslocam por diferentes eras — diz Pérez, que sempre teve uma predileção pelas figuras femininas.
Já nos “Titãs”, a maneira como ele e Marv Wolfman expressavam a subjetividade de heroínas como Estelar, Ravena e Terra quebrava com o machismo vigente nas HQs.
— Eu tenho muito mais amizade com mulheres do que com homens. Aprendi que, para retratá-las com honestidade nos gibis, era necessário ouvir experiências femininas da vida real para entender como as moças pensam e agem, sem incorrer em discursos políticos. Meu esforço era não retratar as mulheres a partir de perspectivas masculinas, que só serviriam para criar Super-Homens de saia — diz Pérez.
Essa preocupação em quebrar arquétipos sexistas foi o segredo de seu trabalho em “Mulher-Maravilha”, que ele desenhava e escrevia em parceria com Len Wein, o criador de Wolverine. A partir dela, ele trouxe o misticismo dos deuses gregos para os quadrinhos, buscando elementos visuais anatômicos da arte greco-latino e o espírito trágico do teatro daquela civilização.
— Verdadeiro demiurgo da narrativa gráfica, Pérez recriou a Mulher-Maravilha de um punhado de barro (é assim que a heroína surge na origem idealizada pelo artista) e fez dela a personagem feminina mais icônica da DC Comics — diz o designer gráfico e professor da Comunicação Aristides Corrêa Dutra, pesquisador da estética das HQs. — Seu trabalho de anatomia é mais clássico, com músculos delineados, contornos nítidos e poucas sombras chapadas. Suas figuras, expressivas e vigorosas, remetem à anatomia dinâmica de quadrinistas lendários como Burne Hogarth (de “Tarzan”).


A família como foco criador
Cheio de curiosidade sobre o Brasil, Pérez integra um coletivo de pesos-pesados internacionais de quadrinhos no FIQ, a começar por outros dois campeões de vendas: o desenhista de origem alemã Klaus Janson e o argentino Eduardo Risso. Janson ganhou prestígio por ter trabalhado como arte-finalista de Frank Miller em “Cavaleiro das Trevas”, e Risso ficou cultuado por “100 balas”. Virão ainda o ilustrador e animador congolês Jérémie Nsing (“O conto africano”), o cartunista alemão Felix “Flix” Görmann (“Quando lá tinha o muro”) e o desenhista turco Yildiray Cinar (“Nothingface”). Mas todos querem Pérez.
— Como ele é uma lenda do quadrinho mainstream, já esperamos que a mesa dele seja a mais assediada — afirma Afonso Andrade, coordenador de quadrinhos da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, responsável pelo FIQ.
Embora não tenha intimidade com a produção brasileira, Pérez chega a Minas Gerais com uma homilia artística para compartilhar com seu fã-clube: ele quer apontar as tentações em que o mercado de HQs caiu.
— A maior delas foi a falta de percepção para o fato de que, por baixo da fantasia de um super-herói, existe um ser humano cheio de problemas, carente de amizade, com questões tão reais quanto as que qualquer um de nós enfrenta. A base que Marv Wolfman e eu levamos para os Titãs era: antes de serem super-heróis, esses personagens precisam ser pessoas de verdade. Portanto, não vamos idealizá-los como uma superequipe, vamos idealizá-los como uma família. Essa noção de família se perdeu nas HQs — diz Pérez. — É preciso reaver esses valores. Se não, tudo é só oportunismo comercial.
URL: http://glo.bo/18Pzuui