quarta-feira, novembro 07, 2012

O conservadorismo americano e a reeleição de Obama

Facilmente o melhor artigo em português que li até agora sobre o assunto:

http://www.dicta.com.br/a-vitoria-de-obama-e-o-fechamento-epistemico-de-certo-conservadorismo/

A VITÓRIA DE OBAMA E O FECHAMENTO EPISTÊMICO DO PARTIDO REPUBLICANO

Filed under: Sociedade incluído por Joel Pinheiro 
Data do post: 7 de novembro de 2012
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O grande assunto do dia é a reeleição de Obama. Difícil para um brasileiro se posicionar com furor, pois lá o debate é muito diferente do nosso. O primeiro fato que deveria chamar atenção é que, embora quase todos os partidários da esquerda brasileira louvem Obama, ele, e o Partido Democrata como um todo, são muito mais próximos da nossa “direita” (o PSDB) do que do PT. E assim como não há um equivalente do PT por lá, também não há, por aqui, um equivalente do Partido Republicano (mesmo o DEM toma explicitamente, como sua inspiração, o Partido Democrata).
Posso dizer que, se eu fosse americano, votaria no Romney, pois acredito que o que os EUA (e na verdade, todo o mundo) precisam é de um Estado menor e com orçamento sob controle, coisas que a candidatura do Romney supostamente simbolizavam. Falando como brasileiro, contudo, não deixo de reconhecer que a reeleição do Obama tem suas vantagens: entrar nos EUA deve ser mais fácil sob ele, e a politica anti-imigração bem menos pesada. Também parece que Obama é melhor no quesito política externa, sendo menos propenso a entrar em guerra com o Irã (e afinal, de que adianta controlar os gastos do governo em casa se se torra quantidades enormes de recursos comprando bombas e financiando ocupações?).
Não nos deixemos, contudo, levar pela propaganda que cria falsamente dois lados extremamente diferentes. O Obama de 2008, o messias da esquerda, não fechou Guantanamo (de fato, aumentou-a) e tem encabeçado uma guerraparticularmente brutal no Paquistão. Romney, por sua vez, não é nenhum gênio do capitalismo, e seu enriquecimento não se deveu tanto à sua habilidade no livre mercado quanto à astúcia em manipular um sistema - criado e mantido pelo governo – que premia artificialmente o mercado financeiro.
O que mais me intriga nas disputas americanas, contudo, é um outro aspecto. Um aspecto que, de si mesmo, tem tão pouco a ver com o trabalho efetivo dos políticos eleitos que é bizarro constatar que ele seja tão preponderante. Falo da chamada guerra cultural que se desenrola nos EUA, e que aos poucos vem sendo importada para cá. Digo desde já que vejo um grande mérito na existência dela: ao menos, em um país do mundo, alimenta-se uma cultura de debate e discussão em que tudo, ou quase tudo, pode ser questionado. É uma pena, então, que o nível dela seja tão baixo; e grande parte da culpa, parece-me, deve-se exatamente ao lado que, se eu fosse americano, provavelmente seria o meu: o dos Republicanos ou conservadores (cada vez mais sinônimos).
Ser conservador nos EUA envolve aparentemente a aceitação de todo um pacote cultural pré-moldado que determina toda a visão do indivíduo, dando-lhe opiniões prontas sobre todo e qualquer assunto: porte de armas, casamento gay, teoria da evolução (!), política fiscal, aborto, política externa, aquecimento global, religião, imigração, história do país, eutanásia e, nos piores momentos, até o local de nascimento do Obama. A atitude básica é a de que o mundo inteiro, todas as instituições outrora consideradas sérias, está envolvido em uma grande conspiração para abafar a verdade, possuída é claro por alguns luminares da direita.
Nas palavras de Rush Limbaugh, influente radialista da direita americana:
“We’re going to talk about Copenhagen. We really live, folks, in two worlds. There are two worlds. We live in two universes. One universe is a lie. One universe is an entire lie. Everything run, dominated, and controlled by the left here and around the world is a lie. The other universe is where we are, and that’s where reality reigns supreme and we deal with it. And seldom do these two universes ever overlap. A great illustration is what’s happening here with what is now incontrovertibly known as a hoax. ” [a farsa a que ele se refere é a teoria do aquecimento global.]
Romney teve que adotar essa postura durante as longas e embaraçosas primárias de seu partido, embora ele seja sabidamente moderado na vida real. Para ele e para a imensa maioria dos políticos, a polarização do discurso serve principalmente como via fácil para conseguir votos fáceis; dê ao eleitorado conservador alguns espelhinhos da vez (casamento gay, imigração, etc.) que eles te dão carta branca para fazer o que bem quiser. Essa estratégia machuca, contudo, seu apelo entre moderados e os diversos decepcionados com o governo Obama. Sua campanha em nada foi ajudada, também, pelas gafes ocasionais que, embora comuns no casulo do conservadorismo altamente ideologizado, provocam escândalo fora dele. A arte de se escandalizar facilmente com pequenas gafes dos adversários, um truque baixo para conseguir uma aura gratuita de moralidade superior, é aliás comum tanto à direita quanto à esquerda; mas comentários pseudocientíficos ridículos como o do candidato a senador republicano Todd Akin – embora não tenham nem o significado e nem a relevância política que a esquerda tentou dar a eles – são presentes perfeitamente evitáveis dados ao adversário.
Alguns articulistas, mesmo entre os republicanos, falam de um fechamento epistêmico do conservadorismo: os conservadores, cada vez mais, lêem apenas aquilo que confirma sua visão altamente particular do mundo. E passam, assim, a viver em um mundo paralelo. Para muitos, Obama não é apenas um candidato com ideias erradas e políticas desastrosas, mas um revolucionário que quer destruir os EUA e que, se reeleito, finalmente mostrará suas verdadeira face.
Vocês podem imaginar o que significaria para os EUA se, na vitória de hoje de Obama, Romney, ao invés de congratular o adversário como é de praxe, fosse à televisão denunciá-lo como um impostor muçulmano nascido fora do país, como insistem certas franjas do Partido Republicano? Isso seria rebaixar a cultura política e as instituições democráticas mais sérias do mundo ao nível abismal da esquerda, não digo nem brasileira – embora certos setores dela não morram de apreço pela solidez institucional – mas venezuelana ou argentina. Tendo em vista o caráter bipartidário da política americana, seria uma verdadeira calamidade. Em nada
E o pior é que nada disso – o moralismo estridente, o desprezo pela seriedade científica, a incapacidade de ouvir o outro lado – é necessário a uma opção conservadora ou liberal crítica do mainstream. É letal, contudo, a quaisquer pretensão dessas ou outras vertentes de constituir o mainstream.
Há mais ou menos um mês, na coluna Lexington da The Economist, comentava-se que a estratégia de ambos os partidos americanos é cada vez menos persuadir ao outro lado – ou mesmo aos indecisos – e cada vez mais apenas convencer seus próprios partidários a votar. Para esse fim, a propaganda mais exagerada e até mentirosa é preferível a argumentos sólidos.
No final das contas, as instituições e o bom senso americanos falaram mais alto (não por causa da escolha do candidato, e sim da serenidade do processo). A vitalidade da república segue sem grandes percalços. Mas é um tanto lamentável constatar que, justamente no país que poderia nos fornecer alternativas ao discurso já batido da centro-esquerda mundial, vigore cada vez mais o histrionismo e a demagogia fácil do Tea Party e do Occupy. É isso que estamos fadados a imitar?