Quase duas da tarde, dia quente. Saio do campus da UFRJ onde lecionei nos últimos dois anos, e onde tinha passado somente pela banalidade de escovar os dentes após almoçar ali perto. Na saída, vejo no alto da escadaria um rosto levemente familiar, mas passo direto. Já quase no portão, ouço uma voz atrás de mim:
"Professor! Professor!"
Eu me viro. Era a dona do rosto levemente familiar. Entendi na hora que devia ter sido minha aluna, mas não lembrava de quando.
"Você não deve lembrar de mim."
"O rosto é familiar, mas me desculpe, não lembro."
"Eu sou a aluna que disse na sua aula que era comunista."
Lembrei na hora. Segundo semestre de 2011, "Os EUA no século XX", minha última eletiva e playground intelectual. Quase quarenta alunos, uns já meus veteranos de outras disciplinas, a maioria novos para mim. Na primeira ou na segunda aula, lembro de uma garota ter se declarado comunista, o que me chamou a atenção, mas sem maiores elaborações. No resto do curso, era daqueles alunos que mantêm um perfil mais discreto, que tendem a se mesclar no mar de rostos da turma. Ao revê-la, não posso dizer que realmente "lembrei" ter sido ela. (Tem algo de triste em lembrar do fato sem lembrar da pessoa...)
"O senhor vai dar aula de novo?"
"Não, infelizmente meu período aqui acabou. Não volto a dar aula tão cedo aqui. Mas você precisa de ajuda em alguma coisa? Você quer orientação?"
"Não, eu queria aula."
Quando se é professor, é o tipo de coisa boa (e não tão frequente) de ouvir.
“É, você mudou a maneira como eu via os EUA. Até pensei em pesquisar o assunto, mas, mesmo depois de decidir que não, queria conhecer mais.”
“Que bom, é sinal de que o curso cumpriu sua função. A ideia é essa mesmo. Muita gente tem um ranço contra eles. É compreensível, eu mesmo teria, se fosse iraquiano, por exemplo...”
“Então eu queria agradecer.”
Olhei para ela. Já recebi agradecimentos de alunos, geralmente no último dia de aula, quando as despedidas são costumeiras. Mas deve ter sido a primeira vez que um me agradece já no ano seguinte. E ela parecia genuinamente contente ao falar sobre a mudança de perspectiva sobre esse país que tanto nos influencia e é tão vilipendiado.
Não lembro bem o que respondi, só que falei de um outro professor, meu amigo e agora quadro permanente da faculdade, também americanista, que também provavelmente oferecerá disciplinas na área. E agradeci também, pois o que ela me disse servia de estímulo. Professores também gostam de ouvir essas coisas, elas nos propelem a continuar, a dar nosso melhor.
Despedimo-nos e cada um foi para um lado. Mas fui embora agradecido. Se ela tivesse dito simplesmente que as aulas foram boas, confesso, eu não teria ficado muito comovido. Feedback positivo é ótimo, claro, mas pode-se dizer que uma aula é boa sem que tenha representado nada de muito significativo. “Boa” pode ser simplesmente “correta”, o mínimo que toda aula deve ser. Mas mudar a visão de alguém, isso é diferente. É dizer que, pelo menos para uma pessoa, você fez a diferença — que todos aqueles textos, slides e horas de pesquisa, estudo e planejamento valeram a pena. É, enfim, o Santo Graal do educador.