Leio em artigo de Joanna Bernat na coletânea The Oral History Reader que à implantação desta técnica — que consiste no uso de entrevistas como fontes históricas — na Grã-Bretanha, em fins dos anos 60, seguiu-se uma verdadeira febre memorialística. Organizações civis começaram a estimular a produção e a até mesmo publicar autobiografias de pessoas comuns: taxistas, alfaiates, sapateiros, dentre outras categorias que até então estavam mais habituadas a viver a História do que falar sobre ela. O objetivo era dos mais nobres (especialmente considerando a época): dar ao passado as cores e o pathos que nem sempre as fontes documentais tradicionalmente utilizadas pelos historiadores possuem. Ouvir o testemunho direto é sempre emocionante, e descobrir que as pessoas mais anônimas poderiam oferecer uma contribuição importante sobre a história recente — idéia que hoje parece tão óbvia — despertou o entusiasmo de muitos, não só acadêmicos, mas também leitores. Era uma valiosa oportunidade para trazer à tona não apenas os grandes eventos de que o século XX fora tão pródigo — guerras mundiais, crises político-econômicas, revoluções —, mas também a minúcia do dia-a-dia, da rotina, das impressões e interpretações daqueles que ainda não haviam sido incluídos nos livros de História a não ser como massa anônima. O resultado foi bastante rico, mesmo se descontarmos alguns exageros de pesquisadores empolgados com seu brinquedo novo. Publicaram-se coletâneas de depoimentos, volumes e mais volumes de testemunhos sobre os mais diversos assuntos, criando-se um interessantíssimo complemento para os estudos históricos mais tradicionais. Ao reconhecer a importância da memória, além dos documentos escritos de sempre, a História se re-humanizava.
A mim, com meus pendores de antiquário sentimental, esse relato inspirou algumas reflexões. Nada acadêmico, é verdade, do contrário estaria escrevendo um paper e não um post de blog. Mas pensei sobre o que deixamos para a posteridade — e não me refiro às gerações que virão, mas ao nosso próprio Eu futuro, que nos aguarda dentro de alguns anos e décadas. Que deixamos para ele? O que preservamos do nosso presente, ou do passado próximo, além de lembranças sujeitas a mil e um percalços?
Fotografias foram a primeira coisa que me vieram à mente. Mas a maioria delas não dura tanto — que o digam as cores amareladas dos retratos de infância, tirados há apenas vinte e poucos anos (os em preto-e-branco resistem muito mais). Sem dúvida, as fotos têm seu valor, enquanto duram; há sempre algo de tocante em achar uma foto esquecida que nos rememora uma época aparentemente enterrada. Ver os próprios traços, e os de outrem, mais frescos, ainda virgens de todas as experiências que nos separaram daquele momento. Há qualquer coisa de impressionante aí, por mais que o costume tenha amortecido o impacto dessa tecnologia.
Manuscritos... Já falei sobre as cartas em post recente. Mas há outros tipos que podem ser interessantes como âncoras de memória. Particularmente sempre achei os diários um recurso primoroso. Não só pelo que revelam de forma direta — isso interessa muito mais aos outros que ao autor. Mas pela maneira como, enquanto são escritos, nos induzem a ponderar, coordenar pensamentos, emoções e lembranças, dando-lhes alguma coerência, mesmo quando ela não exista originalmente. Pela sua própria forma, o relato nos força à construção de uma racionalidade, e necessariamente ao auto-exame. O diário, mais do que um registro cotidiano, acabe se tornando um instrumento de autoconhecimento, até mesmo, quem sabe, quando visto do Eu futuro. Afinal, revisitar os velhos pensamentos, distantes do calor dos episódios narrados, permite que acompanhemos nossa própria trajetória apesar dos lapsos mnemônicos. Reler as confissões de outros tempos não pode, então, levar-nos a entender melhor o nosso Eu de hoje? Sem falar na possibilidade, formidável por si só, de evocar todo um acervo afetivo inconsciente e inevitavelmente desbotado pela vida.
Não é acaso que o tempo seja representado como um ceifador. Perdas são inevitáveis, recordações são perecíveis. Todos os dias perdemos um pouco da nossa própria vida, na a que virá, como usualmente se pensa, em contagem regressiva, mas a que passou e já nos constituiu. São risos que se apagam, mágoas que (felizmente) cicatrizam, amores que se foram, talvez enterrados sob uma indiferença amorfa. Tudo se vai, e deve ir, mas não é preciso que seja de forma tão devastadora quanto nossa negligência rotineira nos leva a pensar. Algo pode ser preservado, ainda que para nosso próprio usufruto em algum porvir incerto. Alguma coisa, enfim, que poderemos gostar de reaver do (então) passado, da mesma forma como hoje poderíamos desejar algo de épocas que desejamos para trás. Não falo de objetos específicos, entesourados avarentamente; apenas o mínimo de nós mesmos, algo que possa guardar um pouco de nossa essência. Algo, enfim, que possa nos inspirar um sorriso carinhoso quando ressurgir das águas de nosso Letes interior.
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Preservando sua memória
1 – Escreva um diário. Não precisa anotar todo dia, é quase impossível. Mas registre o que julgar importante, as impressões mais fortes, as experiências mais significativas — aquelas que dão vontade de contar a alguém como desabafo. Geralmente elas são as que levam às reflexões mais sinceras e profundas.
2 – Tire fotos. Não, não aquelas de álbum de família, posadas. Estas têm seu lugar, mas não são tudo, e podem nem ser as mais interessantes. Registre um pouco do cotidiano: um ambiente, uma paisagem, uma cena absolutamente comum... Dê “flagras” na sua própria vida: encontros com amigos, momentos de estudo, expediente de trabalho, trajetos de todo dia. O que mostraria a vida que você leva hoje? Quem são as pessoas ao seu redor? Os lugares que vê? Os caminhos por que passa? As ocupações a que se dedica?
3 – Observe o mundo ao redor. O que dá testemunho dele? Que acontecimentos do presente poderão ser dignos de menção nos livros de História de daqui a 50 anos? Monte arquivos, faça recortes, preserve um pouco do que há de importante fora do seu ambiente imediato. (A Guerra do Golfo e a queda dos regimes comunistas europeus, por exemplo, estão razoavelmente documentados em recortes de jornal no meu armário.)
4 – Que músicas ouve? Como as pessoas se vestem? Já consegue identificar o “estilo” da época atual? (Não é incrível como cada década tem modas próprias, que parecem muito óbvias quando vistas em retrospecto, mas nunca enquanto a vivemos?)
5 – Não esqueça o diário.
6 – Mande cartas. Peça respostas. Espalhe (boas) lembranças suas pelas vidas daqueles que convivem com você.
7 – Se possível, produza seus próprios vídeos. Não é preciso aguardar uma ocasião especial,como festas de aniversário ou cerimônias de formatura. Registre um pouco do dia-a-dia, do seu mundo.
8 – Visite seus cadernos de telefones e endereços. Que amigos nunca mais receberam um telefonema, ou qualquer notícia sua? Mande nem que seja um cartão. Quem sabe a velha camaradagem não ressurge das cinzas? Pode ser mais fácil do que parece à primeira vista.
9 – Releia de vez em quando os livros que mais lhe marcaram. “Reexperimente” o texto, veja que impressões lhe causam agora e, se for diferente, tente descobrir por quê. Terá você “superado” a obra? Ou só agora alcançou o que o autor pretendia passar? O mesmo vale para filmes e programas.
10 – Já disse para escrever um diário?
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