domingo, agosto 21, 2016

Memórias da nova direita - 2: Fé

Antes da Internet, havia o BBS. Para os demasiado jovens para saber do que se trata, o BBS se assemelhava a um site para o qual se ligava através de um modem. Havia uma interface gráfica simples, à maneira do MS-DOS, administrada por um Sysop, e dali, mediante uma assinatura, se podia baixar todo tipo de arquivo ou participar de fóruns de mensagens. Diferentemente dos sites de hoje, no entanto, o BBS era um mundo fechado: não havia links externos e, para se ir de um para outro, era preciso desconectar e fazer outra ligação pelo modem, na boa e velha conexão discada: 

Em agosto de 1996, o mesmo ano em que entrei na Faculdade de Comunicação Social da UERJ, ganhei meu primeiro computador. Já existia Internet no Brasil, mas era bem mais rara e desconhecida. Meu único contato com ela fora na própria universidade, numa demonstração do site do Jornal do Brasil que não deu muito certo: a conexão lentíssima tornava o carregamento da homepage uma tortura, sem falar na pouca familiaridade com o próprio equipamento do micro. Em casa, porém, o CentroIn BBS seria o primeiro estágio da minha vida virtual. Além da profusão de arquivos disponibilizados, subidos pelos próprios usuários -- programas, imagens, vídeos, sons, numa época em que 1 megabyte era uma coisa gigantesca para se baixar -- havia os fóruns, divididos por assunto. Mas eles não eram propriamente online: usavam-se programas de correio para baixar os "pacotes" de mensagens do dia, respondia-se online e então se mandava o "pacote" das réplicas. 

Havia de tudo, mas o de Religião era de longe o meu favorito. Budistas, judeus, católicos, protestantes, adeptos da Nova Era, ufólogos, espíritas, ateus... Havia de tudo, sob a supervisão de um coordenador eleito que só atuava em casos sérios de desentendimento. O nosso era Claudio Miklos, artista plástico e praticante do Budismo, possivelmente o mais erudito e sensato de todos nós. Suas intervenções eram sempre apropriadas, seus textos sempre interessantes e sua atitude geral era de tolerância e fraternidade. Mas não é por ele que incluí o assunto nestas Memórias..., e sim por uma outra pessoa, meio que uma "ovelha negra", o primeiro de sua espécie a entrar em minha vida: o católico conservador Carlos Ramalhete.

Para entender o porquê de eu mencioná-lo, uma nota sobre contexto se faz necessária: religião foi um elemento muito importante da minha adolescência. Fã de livros de "realismo fantástico" desde criança, descobri o Espiritismo aí pelos doze, e passei a frequentar um centro espiritualista universalista aos quinze. A ideia de que religiosidade não era uma questão de templos e cerimônias, e que Deus se expressava em todas as religiões em vez de se restringir a apenas uma eram fundamentais na minha visão de mudo. As pessoas com quem eu convivia  e que se preocupavam com tais assuntos geralmente tinham a mesma opinião -- e as que não tinham, eram geralmente católicos "não praticantes", essas figuras indefinidas e amáveis tão comuns no Brasil. Não estava acostumado a ver ninguém brigar por religião, e se visse, acharia de uma deselegância profunda. E no fórum de que participava no BBS, a postura geral dos usuários era mais de troca de ideias e perspectivas, não de conflito.

Isto é, até Ramalhete se manifestar.



Não me recordo de nenhum conteúdo específico que ele tenha trazido à tona, nem sei o que os outros membros, mais antigos, pensavam a respeito. O que marcou foi sua postura: ele definitivamente não era um universalista, nem tinha qualquer pudor quanto a isso. A sua igreja era a legítima, a verdadeira, e ponto final. Naturalmente, isso gerava algumas tensões e destoava naquele ambiente. Um supremacista desinibido entre ecumenistas naturalmente parece agressivo, e era assim que eu o via. Provavelmente interagimos algumas vezes, mas não tenho certeza. A impressão negativa, contudo, ficou.

Em 97, descobri a Internet. E novamente descobri um fórum sobre religião, agora uma "lista de discussão". Esse era menos variado, os membros mais ativos sendo eu mesmo, um pastor cego que enviava uma mensagem diária e um rapaz católico que adorava polêmicas, Cledson. Convertido do protestantismo, Cledson ilustrava à perfeição o que se diz do entusiasmo dos conversos. Com ele polemizei inúmeros vezes em mensagens gigantescas, réplicas parágrafo a parágrafo, não raro com argumentos tirados de sites como a Secular Web. Em retrospecto, não soa lá muito coerente: eu, um espírita universalista, alimentando-me de polemistas ateus e céticos para combater as crenças "irracionais" de um católico aguerrido. Em termos de argumentação e história das ideias religiosas, foi um aprendizado fantástico e uma verdadeira formação; em termos éticos, uma incoerência juvenil.

Ramalhete e Cledson foram amostras de como o catolicismo não era a massa amorfa que eu julgava. Mas até aí, estávamos apenas no campo da polêmica religiosa, sem extrapolação política. Esta eu descobriria depois, quando meu deparei com coisas como a Frente Universitária Lepanto. Esse tipo de "nacionalismo religioso", supremacista por natureza e excludente por consequência, me mostrava que meus dois colegas de fórum não eram casos isolados, fanáticos excêntricos falando somente por si mesmos, mas parte de uma espécie muito maior. Muito mais do que a virgindade de Maria ou a divindade de Jesus, tratava-se de uma toda uma visão da história do mundo que, se aceita, teria sérias consequências. Para começar, pluralismo religioso não era o forte desse pessoal, uma vez que qualquer alternativa era ilegítima a priori; mais do que isso, todos os processos históricos que haviam tornado possíveis essa pluralidade, da Reforma ao Iluminismo e à Revolução Francesa, bem como o liberalismo e a separação entre Igreja e Estado, eram contestadas. (Lembro-me bem de um jornalzinho da TFP na porta da faculdade em que se louvava a vida idílica dos camponeses da França no Antigo Regime.) O universalismo que eu havia aprendido como um valor precioso tinha, neste mundo diferente, uma chave inversa: em vez de virtude, era uma fraqueza moderna, quando não uma heresia; não era propriamente um sinal de respeito ao próximo, mas antes uma fragilidade moral, um sintoma de uma sociedade que jamais deveria ter se desviado da égide do Cristo, representado pela sua única igreja.



O contato com esse tipo de nicho, que verdadeiramente pode ser chamado de reacionário sem medo de indelicadeza, me preparou o espírito para alguns setores da chamada nova direita. Diferentemente da maior parte do protestantismo brasileiro, dominado por igrejas neopentecostais estridentes, mas intelectualmente rasas, o catolicismo tem uma tradição apologética milenar. Em debates mais cultos, isso é um patrimônio formidável, que pode ser muito atraente para quem procura uma liderança intelectual. Conheci pessoas que, sobre qualquer questão, pulam de um santo doutor a outro e evocam tradições, obras e pensadores que, em 90% das vezes, serão muito pouco conhecidos pelo interlocutor típico, dando-lhes certa vantagem psicológica e pelo menos a aparência de solidez intelectual. Se for um debate público, essa vantagem pode ser decisiva: não é por acaso que uma das técnicas consagradas de Olavo de Carvalho é tachar seus oponentes de ignorantes por não usarem as mesmas referências intelectuais que ele -- omitindo o fato de que, às vezes, elas não têm o reconhecimento e a autoridade que ele lhes atribui a não ser em nichos muito específicos. Como manobra retórica ("Como você pode se dizer um historiador/sociólogo/whatever se não conhece Fulano de Tal?"), é eficaz: se o interlocutor/oponente for honesto, vai reconhecer sua pouca familiaridade com aqueles autores e "estudos irrefutáveis" e precisará de tempo para entender o que está sendo dito, dando ao outro a aparência de superioridade. É uma posição a que especialistas e acadêmicos não estão muito acostumados e para a qual raramente têm defesas. 

No post anterior, mencionei como o surgimento da nova direita nos anos 90 tinha muito de uma rebelião intelectual contra a pasmaceira intelectual -- incluindo valores -- vigente. À luz dessa premissa, fazia todo sentido que parte da contestação viesse de setores religiosos: em nossas universidades... não, em nosso meio intelectual contemporâneo, a religião tende a ser um embaraço, algo que no máximo se tangencia. Levar seus princípios a sério, ou até as últimas consequências, ainda causa estranhamento e desaprovação. Mas o fato de ela ser malvista entre os "sábios" não a torna menos importante para um número enorme de pessoas, que, uma vez atingindo um determinado nível de instrução e acesso à conectividade propiciada pela tecnologia, vai tomá-la como referência em debates, sites, associações e movimentos. Que isso fosse chegar ao mainstream político e à (re)constituição de discursos ideológicos de combate, parece evidente quando se olha para trás, mas, na época, não parecia tanto. Por enquanto, ainda ficaremos na fase "marginal" em que o movimento se encontrava nos anos 90 e começo de 2000.

(Continua.)



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