Foi em 1996 a primeira vez que ouvi falar, pelos jornais, de uma polêmica curiosa. Alguém havia dito, em linha gerais, que se recusava a criar o filho num país onde Caetano Veloso era considerado pensador. Aos meus 16, 17 anos, achei divertido o ataque a uma vaca sagrada por quem nunca morri de amores. Como qualquer jovem em busca não só da "cultura", mas também da aparência da cultura sabia à época, havia pessoas de quem não se podia falar mal, sob pena de opróbrio e olhares de pena ou desdém: Caetano, Chico Buarque ou, noutro campo, Fernanda Montenegro, Marília Pera e outros. Mesmo que você não gostasse deles, tinha de demonstrar certo respeito -- até alguém ousar dizer que o rei estava nu e quebrar o acordo tácito sobre o que estava ou não acima do bem e do mal. Havia um prazer um tanto malvado na coisa.
O iconoclasta em questão era Bruno Tolentino, poeta e professor universitário de quem nunca ouvira falar antes. Mas não foi por ele quem recordei a polêmica, e sim por um seu admirador que também apareceu nos jornais nesse momento. Um homem que também não era familiar, mas fez do ataque sistemático a vacas sagradas, piedades politicamente corretas e tabus vários uma arte e, ao fazê-lo, ensinou uma geração de jovens estudantes uma forma diferente de rebelião. Aprendíamos a dizer o que os mais velhos não ousavam, a contestar o que pareciam "dogmas" e a divisar obras, discursos e ideias completamente fora do radar de nossos professores universitários e da grande imprensa. Era um pequeno universo paralelo, um nicho de discussões, em que um certo clima de "clandestinidade" apimentava o intelectualismo aspirante do que pareciam ser apenas algumas dúzias de graduandos Brasil afora. Não era apenas o prazer de descobrir coisas novas, mas de explorar uma terra incognita mental: questões diante das quais os nossos mestres, confortavelmente instalados nos tronos da autoridade socialmente reconhecida, silenciavam com desdém ou, pior, fugiam constrangidos. "Como você se atreve a questionar o autor X ou a ideia Y?", era o máximo que se conseguia. E foi aí, nesse vácuo deixado pelo establishment intelectual-universitário, que esses jovens contestadores encontraram em Olavo de Carvalho uma referência, ou mesmo um líder: o outsider carismático que, com erudição aparentemente infinita e contundentes artigos de jornal, "desmascarava" os falsos ídolos de nossos pais e professores. E estes, eles próprios rebeldes em sua juventude, muitas vezes pareciam chocados ao verem que as convicções pelas quais tanto haviam lutado durante os anos de chumbo -- a igualdade social, o reconhecimento da cultura nacional, a superioridade moral da esquerda política, a recusa da religião como algo relevante na arena pública -- precisavam demonstrar seus méritos. Como assim!?
Para quem possa estranhar essa fascinação tendo em vista o que Olavo diz e evoca hoje, cabe lembrar que em meados dos anos 90 ele tinha muito mais compostura pública. Comunicando-se principalmente pela escrita e tendo jornais como meio principal de divulgação -- seu curso de Filosofia era necessariamente mais limitado --, sua linguagem obedecia aos padrões tradicionais da imprensa opinativa. Ele também era muito mais comedido quanto a teorias de conspiração e mais seletivo na escolha dos temas, geralmente atualidades, cultura e grandes e ideias. Mantinha-se, pois, dentro de certos parâmetros de respeitabilidade. Mas o que realmente atraía em seus textos eram o senso de humor incisivo, as críticas a um sem-número de figuras públicas (que raramente se dignavam a responder ou que, quando o faziam, nunca era com a mesma verve) e as referências a ideias e autores que, se quase ninguém conhecia, pareciam fazer muito sentido na maneira como eram apresentados. E quanto mais célebre fosse a vítima da eloquência olaviana, menos probabilidade havia de uma réplica ou debate. E assim, sem que houvesse qualquer reação, milhares aprenderam a desprezar Marilena Chauí sem nem mesmo saberem direito quem era, ou os professores de Humanas da USP, mesmo sem conhecerem de suas credenciais ou sua obra. Bastava saber -- e todos "sabiam" -- que eles eram parte de uma elite intelectual mimada, aferrada a ideias ultrapassadas (o chavão dos "100 milhões de mortos pelo comunismo" veio depois), e incapaz de uma debate real. Silenciavam enquanto uma intelectualidade alternativa e antagônica se formava embaixo dos seus narizes, porém fora do circuito acadêmico que controlavam e ao qual estavam acostumados. Não se pode culpá-los de todo: no campus e na sociedade em geral, eram realmente poucas as vozes que contestavam sua autoridade de forma visível. Por que se preocupar com um nicho ainda marginal de contestadores, sem cargo nem poder editorial? E foram deixando as ideias e artigos circularem sem resposta em meio à "plebe" acadêmica juvenil, nas poucas colunas impressas e fóruns online disponíveis -- uma marginalidade que nem de longe parecia capaz de chegar aos centros de prestígio acadêmico.
Lembro-me de uma ocasião na UERJ, um evento no auditório da Faculdade de Comunicação Social, em que se criticava o "neoliberalismo" do governo Fernando Henrique e a Rede Globo, então o discurso padrão da esquerda. Devia ser o ano de 1996, talvez 97, e estávamos entre o segundo e o quarto período do curso. Era algum tipo de conferência ou mesa-redonda e um colega, Daniel, e apenas ele, fez o que era quase impensável: na hora das perguntas da plateia, ele questionou a tese do expositor. Infelizmente não me recordo mais do conteúdo do que ele disse, nem tampouco posso julgar seu mérito, mas lembro da impressão de surpresa: ele era o único que apresentou um contraponto em um auditório cheio em vez de tomar como certos os pressupostos do que era dito, a saber, a maldade inerente do governo e da Globo. Noutras palavras, ele demandou do que parecia uma exposição de fatos consensuais uma defesa convincente. Apesar do pouco tempo de faculdade, eu já sabia que isso era inusitado e por isso marcou a memória: com serenidade e polidez, Daniel questionou uma narrativa que não costumava ser desafiada -- e, ao mesmo tempo, mostrou a pobreza de perspectivas do que passava por discurso crítico em nossa faculdade, mesmo sendo a segunda mais disputada no maior vestibular público do Rio de Janeiro daquele tempo.
Esses três elementos intelectuais -- o frisson de uma rebelião ideológica sem grandes custos num ambiente democrático, a inércia/inépcia dos intelectuais e acadêmicos estabelecidos e a pouca variedade de pontos de vista em circulação nos meios mais educados --, somados ao aparecimento da Internet e uma mídia virtual alternativa, estão na raiz do que viria a ser nova direita brasileira. (Continua.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário