Mataram Saddam. Na forca, nesta madrugada, o que deve ter correspondido mais ou menos ao amanhecer no Iraque. Ao homem que governou um país com uma mão de ferro mergulhada em sangue, deram a "morte suja" medieval -- considerada particularmente humilhante porque o condenado muitas vezes liberava todo tipo de fluido enquanto agonizava, de fezes a sêmen. Uma morte assustadora também: quando se usava uma corda curta, o pescoço não quebrava, e o infeliz podia levar até três minutos para deixar de sentir os terrores do sufocamento.
Leio a notícia com melancolia. Naturalmente, sei bem os motivos que levaram Saddam a essa situação; conheço também os precedentes, como os dos altos oficiais nazistas enforcados depois dos julgamentos de Nuremberg. Mas também não esqueço que se tratava de um homem preso e subjugado, tornado inofensivo, posto na exasperante situação de uma contagem regressiva para a execução. Não importa o que ele tenha feito, é impossível evitar a empatia e, particularmente, a idéia de que ninguém merece isso. Mesmo Saddam.
Bem posso imaginar o que sentem suas vítimas, que talvez estejam se regozijando. Entendo a posição delas, o senso de que "justiça foi feita" -- muitas vezes, um eufemismo para o prazer da desforra. Mas quem disse que as pessoas emocionalmente envolvidas são as melhores para julgar? Se o fossem, não haveria necessidade de tribunais e leis, e viveríamos num mundo (ainda mais) hobbesiano de luta de todos contra todos. Não, definitivamente não são elas, infectadas a seu malgrado com o ódio provocado pela perversidade de um tirano, quem deve julgar o direito de seu algoz continuar vivendo. Mas alguém deve? É admissível que um prisioneiro subjugado, neutralizado em sua ameaça, seja ainda assim morto? Há justiça quando a satisfação só vem com a visão de um cadáver?
Muita gente sensata dirá que sim. Porém, boa parte delas tratá no tom da resposta a mesma ânsia de desforra que as vítimas, o mesmo desejo de ver a "retribuição" do mal àquele que primeiro o perpetrou. Dirão sim não porque tenham pensado a respeito, mas porque, por inteligentes e sensatas que sejam, naquele momento estarão falando com o coração. Querem vingança, tanto quanto as vítimas, e matar alguém para se sentir bem não me parece um motivo suficiente.
Claro, nem todos serão tão primários, e é perfeitamente admissível que haja argumentos racionais a favor da pena de morte. Ainda estou por vê-los, na verdade. Certamente não se encontram na imprensa, onde vez por outra algum leitor indignado, e mais raramente um militante qualquer, a apresenta como solução para horrores como o dos últimos atentados no Rio de Janeiro -- ou seja, a pena capital como forma de remediar um sistema carcerário ineficaz, o que significa não julgá-la por seus próprios méritos. Também não estão nas melhores tradições espirituais, ao menos na parte menos contaminada com costumes de época e conveniências mundanas. Então, onde?
Seja como for, para Saddam, a questão perdeu qualquer importância prática. Ele se foi. Lamento por ele -- por tudo que fez pelo poder, e por sua aparente incapacidade de mudar de idéia depois que o perdeu. Por outro lado, fico pensando também no que poderia ter sido sua vida se continuasse apenas preso. Teria reconsiderado alguma coisa? A humilhação diária de se ver como prisioneiro teria abatido seu enorme ego? Seria possível que, talvez, adotasse valores diferentes? Impossível saber. Se havia alguma probabilidade de reforma em Saddam, ela lhe foi tirada às primeiras horas da manhã. E onde muitos viram a derrubada final de um tirano, eu vi também uma oportunidade perdida.
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Pesquisando um pouco sobre o tema, encontrei uma mensagem do Dalai Lama sobre a pena de morte. Transcrevo na íntegra:
His Holiness, Tenzin Gyatso, The Fourteenth Dalai Lama: Message Supporting the Moratorium on the Death Penalty
In general, death is something none of us wants, in fact it is something we don't even like to think about. When death takes place naturally, it is a process beyond our control to stop, but where death is wilfully and deliberately brought about, it is very unfortunate. Of course, within our legal systems there are said to be certain reasons and purposes for employing the death penalty. It is used to punish offenders, to prevent them ever repeating their misdeed and to deter others.
However, if we examine the situation more carefully, we will find that these are not real solutions.
Harmful actions and their tragic consequences all have their origin in disturbing emotions and negative thoughts, and these are a state of mind, whose potential we find within all human beings. From this point of view, every one of us has the potential to commit crimes, because we are all subject to negative disturbing emotions and negative mental qualities. And we will not overcome these by executing other people.
What is deemed criminal can vary greatly from country to country. In some countries, for example, speaking out for human rights is considered criminal, whereas in other countries preventing free speech is a crime. The punishments for crimes are also very different, but usually include various forms of imprisonment or hardship, financial penalties and, in a number of countries, physical pain. In some countries, crimes that the government considers very serious are punished by executing the person who committed the crime.
The death penalty fulfills a preventive function, but it is also very clearly a form of revenge. It is an especially severe form of punishment because it is so final. The human life is ended and the executed person is deprived of the opportunity to change, to restore the harm done or compensate for it. Before advocating execution we should consider whether criminals are intrinsically negative and harmful people or whether they will remain perpetually in the same state of mind in which the committed their crime or not. The answer, i believe, is definitely not.
However horrible the act they have committed, I believe that everyone has the potential to improve and correct themselves. Therefore, i am optimistic that it remains possible to deter criminal activity, and prevent such harmful consequences of such acts in society, without having to resort to the death penalty.
My overriding belief is that is is always possible for criminals to improve and that by its very finality the death penalty contradicts this. therefore, I support those organizations and individuals who are trying to bring an end to the use of the death penalty.
Today, in many societies very little importance is placed on education or the development of human values through social programs and entertainment. In fact, if we take television programming as an example, violence, including killing, is regarded as having a high entertainment value. This is indicative of how misguided we have become.
I believe human beings are not violent by nature. Unlike lions and tigers, we are not naturally equipped to kill with sharp teeth and claws. From a Buddhist viewpoint, I believe that the basic nature of every sentient being is pure, that the deeper nature of mind is something pure. Human beings become violent because of negative thoughts which arise as a result of their environment and circumstance.
I wholeheartedly support an appeal to those countries who at present employ the death penalty to observe an unconditional moratorium. At the same time we should give more support to education and encourage a greater sense of universal responsibility. We need to explain the importance of the practice of love and compassion for our own survival and to try to minimize those conditions which foster murderous tendencies, such as the proliferation of weapons in our societies. These are things even private individual can work towards.
This statement was read by Kobutsu Malone, Zenji at the "Creating a Legacy" event on Friday night, April 9, 1999 at Laurie Auditorium
Bem posso imaginar o que sentem suas vítimas, que talvez estejam se regozijando. Entendo a posição delas, o senso de que "justiça foi feita" -- muitas vezes, um eufemismo para o prazer da desforra. Mas quem disse que as pessoas emocionalmente envolvidas são as melhores para julgar? Se o fossem, não haveria necessidade de tribunais e leis, e viveríamos num mundo (ainda mais) hobbesiano de luta de todos contra todos. Não, definitivamente não são elas, infectadas a seu malgrado com o ódio provocado pela perversidade de um tirano, quem deve julgar o direito de seu algoz continuar vivendo. Mas alguém deve? É admissível que um prisioneiro subjugado, neutralizado em sua ameaça, seja ainda assim morto? Há justiça quando a satisfação só vem com a visão de um cadáver?
Muita gente sensata dirá que sim. Porém, boa parte delas tratá no tom da resposta a mesma ânsia de desforra que as vítimas, o mesmo desejo de ver a "retribuição" do mal àquele que primeiro o perpetrou. Dirão sim não porque tenham pensado a respeito, mas porque, por inteligentes e sensatas que sejam, naquele momento estarão falando com o coração. Querem vingança, tanto quanto as vítimas, e matar alguém para se sentir bem não me parece um motivo suficiente.
Claro, nem todos serão tão primários, e é perfeitamente admissível que haja argumentos racionais a favor da pena de morte. Ainda estou por vê-los, na verdade. Certamente não se encontram na imprensa, onde vez por outra algum leitor indignado, e mais raramente um militante qualquer, a apresenta como solução para horrores como o dos últimos atentados no Rio de Janeiro -- ou seja, a pena capital como forma de remediar um sistema carcerário ineficaz, o que significa não julgá-la por seus próprios méritos. Também não estão nas melhores tradições espirituais, ao menos na parte menos contaminada com costumes de época e conveniências mundanas. Então, onde?
Seja como for, para Saddam, a questão perdeu qualquer importância prática. Ele se foi. Lamento por ele -- por tudo que fez pelo poder, e por sua aparente incapacidade de mudar de idéia depois que o perdeu. Por outro lado, fico pensando também no que poderia ter sido sua vida se continuasse apenas preso. Teria reconsiderado alguma coisa? A humilhação diária de se ver como prisioneiro teria abatido seu enorme ego? Seria possível que, talvez, adotasse valores diferentes? Impossível saber. Se havia alguma probabilidade de reforma em Saddam, ela lhe foi tirada às primeiras horas da manhã. E onde muitos viram a derrubada final de um tirano, eu vi também uma oportunidade perdida.
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Pesquisando um pouco sobre o tema, encontrei uma mensagem do Dalai Lama sobre a pena de morte. Transcrevo na íntegra:
His Holiness, Tenzin Gyatso, The Fourteenth Dalai Lama: Message Supporting the Moratorium on the Death Penalty
In general, death is something none of us wants, in fact it is something we don't even like to think about. When death takes place naturally, it is a process beyond our control to stop, but where death is wilfully and deliberately brought about, it is very unfortunate. Of course, within our legal systems there are said to be certain reasons and purposes for employing the death penalty. It is used to punish offenders, to prevent them ever repeating their misdeed and to deter others.
However, if we examine the situation more carefully, we will find that these are not real solutions.
Harmful actions and their tragic consequences all have their origin in disturbing emotions and negative thoughts, and these are a state of mind, whose potential we find within all human beings. From this point of view, every one of us has the potential to commit crimes, because we are all subject to negative disturbing emotions and negative mental qualities. And we will not overcome these by executing other people.
What is deemed criminal can vary greatly from country to country. In some countries, for example, speaking out for human rights is considered criminal, whereas in other countries preventing free speech is a crime. The punishments for crimes are also very different, but usually include various forms of imprisonment or hardship, financial penalties and, in a number of countries, physical pain. In some countries, crimes that the government considers very serious are punished by executing the person who committed the crime.
The death penalty fulfills a preventive function, but it is also very clearly a form of revenge. It is an especially severe form of punishment because it is so final. The human life is ended and the executed person is deprived of the opportunity to change, to restore the harm done or compensate for it. Before advocating execution we should consider whether criminals are intrinsically negative and harmful people or whether they will remain perpetually in the same state of mind in which the committed their crime or not. The answer, i believe, is definitely not.
However horrible the act they have committed, I believe that everyone has the potential to improve and correct themselves. Therefore, i am optimistic that it remains possible to deter criminal activity, and prevent such harmful consequences of such acts in society, without having to resort to the death penalty.
My overriding belief is that is is always possible for criminals to improve and that by its very finality the death penalty contradicts this. therefore, I support those organizations and individuals who are trying to bring an end to the use of the death penalty.
Today, in many societies very little importance is placed on education or the development of human values through social programs and entertainment. In fact, if we take television programming as an example, violence, including killing, is regarded as having a high entertainment value. This is indicative of how misguided we have become.
I believe human beings are not violent by nature. Unlike lions and tigers, we are not naturally equipped to kill with sharp teeth and claws. From a Buddhist viewpoint, I believe that the basic nature of every sentient being is pure, that the deeper nature of mind is something pure. Human beings become violent because of negative thoughts which arise as a result of their environment and circumstance.
I wholeheartedly support an appeal to those countries who at present employ the death penalty to observe an unconditional moratorium. At the same time we should give more support to education and encourage a greater sense of universal responsibility. We need to explain the importance of the practice of love and compassion for our own survival and to try to minimize those conditions which foster murderous tendencies, such as the proliferation of weapons in our societies. These are things even private individual can work towards.
This statement was read by Kobutsu Malone, Zenji at the "Creating a Legacy" event on Friday night, April 9, 1999 at Laurie Auditorium
4 comentários:
Obrigada por visitar o Dissonante.
Na verdade, eu não tenho opinião formada sobre a morte do Sadam, mas
preferia que não tivesse acontecido.
Olá Rodrigo.
Acabei de conhecer seu blog, e já estou adcionando em meus favoritos.
Apenas li este seu lúcido comentário a respeito da morte de Saddam. Está certo que ele matou pessoas e merece pagar por isso, sim, claro! Que seja preso então pelas leis dos homens e se ``vire`` com a Justiça Divina quando chegar a hora. Agora usar destas mesmas leis e fazer o mesmo com um ser humano, adiantando sua hora, não, isso não me parece justiça! Sou nova, na verdade eu nem sabia que isso existia em pleno século XXI. Esta é o que eu sinto, mas sei que preciso não estou defedendo Saddam, de maneira alguma. Estou defedendo um direito eu acho.
Que Deus o tenha.
Um abraço!
Olá, Priscila.
Obrigado por ter vindo ao Divagações. Esteja certa de que visitarei o Dissonante mais vezes.
Um abraço,
Rodrigo.
Cara Anônima,
É realmente lamentável a execução. Como você, também sou contra a pena de morte. Infelizmente, nosso mundo ainda tem muito o que melhorar quanto ao respeito à vida em geral, e à humana em particular.
Seja sempre bem-vinda ao Divagações. Gostaria de saber como o achou (ele não é muito visitado), mas fica para uma próxima vez.
Um abraço e um ótimo Ano Novo,
Rodrigo.
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