sexta-feira, dezembro 15, 2006

O poder de uma boa tirada

Uma das funções deste blog é divulgar boas leituras, virtuais ou não. Assim, é no pleno cumprimento do dever que apresento a vocês o Sr. Ambrose Bierce, muito conhecido em terras anglófonas como autor de histórias de terror -- o que já lhe rende o crédito pela audácia --, mas também um satirista de primeira linha. O Dicionário do Diabo, sua obra máxima nesse campo, já foi lançado em português, para delícia dos ironistas e dos apreciadores de um humor ferino. Quem lê inglês poderá encontrar a versão original gratuitamente aqui.


O Estado do Paraná / Data:18/9/2005
Vamos rir um pouco com o “amargo” Bierce?

João Manuel Simões
O norte-americano Ambrose Bierce (1842-1914), jornalista famoso pela sua irreverência viperina, e escritor que se notabilizou como autor de contos de horror algo satânicos, da linhagem de Edgar Allan Poe, foi sobretudo um satirista implacável, cuja metralhadora giratória não poupava ninguém.

Cultivando permanentemente a ironia ácida e o sarcasmo contundente, cético e cínico, com uma tendência irresistível para um pessimismo algo mórbido, mas também capaz de exercitar o humor negro (ou branco), apolíneo ou dionisíaco, Bierce pertence a uma família ilustre que tem entre seus antepassados Swift e Voltaire. Isso para não falar dos quase irmãos que se chamaram Oscar Wilde, Bernard Shaw e H. L. Mencken.

Conhecido em vida como the bitter Bierce, o amargo Bierce, esbanjou talento na atividade jornalística, em cuja província fez de tudo, da reportagem ao editorial, da crônica do quotidiano à exegese política, da análise social à crítica literária.

Foi sobretudo um iconoclasta militante, sempre empenhado em demolir ou fustigar com o seu látego verbal acerbo políticos corruptos ou demagogos, administradores incompetentes na administração e competentíssimos nas suas falcatruas rapinantes, empresários desonestos, artistas medíocres, camelôs e charlatães da fé e, last but not least, poetastros.

A síntese do seu pensamento e da sua cosmovisão crítica encontra-se no livro famoso, The devil’s dictionary (O dicionário do diabo). É desse dicionário que eu irei reproduzir alguns verbetes extremamente saborosos, que fui colecionando ao longo dos anos, extraídos de jornais, revistas e livros. (Curiosamente, nunca tive nas mãos o original ou a tradução do dicionário ambrosiano).

Aí vai, pois, uma série de verbetes em cuja textualidade se patenteia de modo claro a verve e o espírito cintilante do autor. Escolhi naturalmente aqueles que se me afiguram mais hilariantes ou significativos.

Como define Bierce o cérebro? Assim: “Trata-se de um aparelho fisiológico com o qual nós pensamos...que pensamos”.

E o que vem a ser, na sua concepção, um infiel? Bierce explica: “Em Nova York, aquele que não crê na religião cristã. Em Bagdá, aquele que crê”.

E o que é, pela peculiaríssima ótica de Ambrose, um aborígene? Ele responde, curto e grosso: “Sujeito de valor reduzido que atravanca as terras recém-descobertas, mas que logo deixa de atravancá-las e passa a fertilizar o solo”. Jonathan Swift não diria melhor.

E como concebe ele a amizade? Com língua afiada e sabendo a fel, Bierce dá a sua definição cáustica: “É um bote suficientemente grande para levar dois passageiros, quando faz bom tempo, mas só um, quando o tempo fica ruim”. Monsieur de Arouet assinaria em baixo.

Continuemos rindo com a leitura de outro verbete – canibal: “Gastrônomo da velha escola, que conserva os gostos simples e adere à dieta natural da época préporcina”.

Vejamos agora o verbete cultura: “Aquela espécie de ignorância que distingue os estudiosos e intelectuais”.

Um conhecido, na opinião desassombrada do dicionarista e prestidigitador conceitual, nada mais é do que “uma pessoa que nós conhecemos suficientemente bem para pedir-lhe dinheiro emprestado, mas não o suficiente para emprestar-lhe”. Shaw e Wilde endossariam a “boutade”.

Já a meninice, vista pelos seus óculos de lentes escuras e irreverentes, é simplesmente “aquele período intermediário entre a idiotia da infância e a loucura da juventude”. Flaubert adoraria.

E o que é verdadeiramente um connaisseur? “Especialista que sabe tudo sobre algo e nada sobre o resto”. É fogo, o amargo Bierce...

Agora, vejamos uma das mais pungentes definições do norte-americano. Ela está consubstanciada no verbete nascimento: “A primeira e a maior de todas as desgraças que podem acontecer ao pobre ser humano”. Existe aí um eco nítido do verso de Camões: “E sempre o mal maior é ter nascido”. Será que Bierce o conhecia? “May be, may be not”.

Outra definição famosa é a que ele dá de patriotismo: “No célebre dicionário do dr. Johnson, o patriotismo aparece definido como o último refúgio dos patifes. Permito-me fazer uma correção indispensável: não é o último, mas o primeiro”.Um verbete digno de La Rochefoucauld ou Chamfort.

Finalmente, a super-hilariante definição de regaço: “Um dos órgãos mais importantes do corpo feminino, providência admirável da natureza para o repouso das crianças, mas útil sobretudo em festas campestres, para suportar bandejas com frangos frios ou cabeças de marmanjos”.

Será preciso acrescentar algo mais? Penso que não. Temos aí o quantum satis. O bastante para o justo deleite do prezado leitor que me deu a honra da sua leitura.

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