Como jornalista de primeira formação e historiador, fui treinado para lidar com fontes. Por "lidar", entenda-se analisá-las e verificar sua credibilidade, além de, quando possível, compará-la com outras, independentes, que a corroborem ou não. Parece uma coisa básica, quase de senso comum -- claro, não me refiro a quem trabalha em área superespecializadas --, mas cuja importância é imensa. Por isso mesmo, dói ver o quanto esse cuidado básico com as informações que nos chegam fazem falta, especialmente na Internet das redes sociais. Boatos e mentiras deliberadas surgem num ponto e começam a ser repetidas indefinidamente numa câmara de eco onde o mais importante não é a verdade, mas a confirmação das próprias opiniões.
Assim, é muito preocupante que um número cada vez maior de pessoas use a Internet para se informar sem qualquer preparo para saber o que é ou não digno de confiança. Já postei sobre isso outras vezes, e o assunto virou um dos clichês no meu Facebook. Pessoas excelentes, bem intencionadas, acabam acreditando nas maiores barbaridades e, pior ainda, passando-as adiante sem noção do mal que podem estar fazendo. Difamação, calúnia, boatos alarmistas, campanhas políticas disfarçadas, tudo vale na era da "pós-verdade".
Um desses boatos que se eternizam é o tal "Decálogo de Lênin", uma espécie de "dez mandamentos da maldade política" que, na última busca que diz, rendeu 68.400 resultados no Google. Não os examinei todos, obviamente, mas notei que o assunto é especialmente em blogs da direita ideológica, da ala marcada pelo anticomunismo exacerbado e, infelizmente, por uma tendência ao conspiracionismo. É o pessoal que fala de "marxismo cultural" como motor da história recente, em que tudo que não lhes agrada -- movimentos identitários, direitos humanos, instituições internacionais -- é efeito de uma terrível conspiração da esquerda. Enfim, um estilo de ver as coisas que tem uma longa trajetória, pelo menos desde a Revolução Francesa, passando, claro, pelos Estados Unidos, hoje talvez a maior fonte de teorias da conspiração em todo o mundo.
Pois bem, o tal decálogo se trai pela própria linguagem. Mesmo que o leitor não saiba nada sobre sua história, o próprio texto mostra uma contradição patente: o autor parece muito cônscio está fazendo o mal. Logo no primeiro item, lê-se:
1. Corrompa a juventude e dê-lhe liberdade sexual.
1. Corrompa a juventude e dê-lhe liberdade sexual.
Ora, o decálogo é supostamente escrito por um revolucionário, alguém que dedica a vida a uma causa. Isso, obviamente, porque ele a considera justa, isto é, conducente a um mundo melhor. Aos seus próprios olhos, a corrupção é aquilo contra o que ele luta, não o que ele almeja. Portanto, que tipo de líder revolucionário iria se dirigir aos seus colegas de luta, que acreditam no que ele acredita, nesses termos, de corromper a juventude? Que tipo de idealista considera que sua tarefa é uma corrupção?
Nem vou entrar no mérito da liberdade sexual, que, até onde sei, nunca foi preconizada pelos bolcheviques, muito menos igualada a uma corrupção que tivesse serventia revolucionária. Se Lênin a pregava, seria interessante ver em que momento o seu partido a aplicou quando chegou ao poder, porque é de poder que se trata, e como o sexo livre iria derrubar o Czar em empoderar os trabalhadores é uma questão no mínimo controversa. Mas isso significaria exigir do defensor do decálogo que estudasse para demonstrar sua realidade, o que provavelmente é exigir muito.
Não vou examinar item a item, o que seria exaustivo. Mas deixo aqui dois links, um em português e o outros em inglês, que mostram as verdadeiras origens do texto (e suas variações). Pelo que parece, até pastores evangélicos participaram da criação do "decálogo" ao longo do tempo:
http://otaviopinto.com/index.php/2016/06/25/lenin-disse-isso/ http://www.snopes.com/history/document/communistrules.asp
Finalizando, é preciso constantemente reafirmar o perigo que esse tipo de tolice representa. Ao criar inimigos fantasiosos e onipresentes, quase sobre-humanos em sua perversidade, como os extremos do espectro político sempre fazem, cria-se uma sensação de insegurança que facilmente leva ao ódio e ao desejo por um líder "forte" que nos salve. Ditaduras se alimentam desse tipo de disposição, pouco importando se o "inimigo" é o judeu, o capitalismo internacional ou o comunismo. Existe no Brasil uma verdadeira indústria, hoje mais notável à direita do espectro, de conspiracionismo e mentiras sistemáticas, que disseminam as maiores barbaridades para melhor difundir certas ideias e crenças. Isso era coisa de nicho, mas agora espraia-se por todo lado: vejo alunos meus, de 15 anos, falando nos perigos da "nova ordem mundial" e coisas do gênero. Com o acirramento da disputa política no Brasil, esse tipo de coisa está ganhando espaço e rumando para a "normalização", o que é pésismo. Se nos Estados Unidos, onde os recursos são maiores, esse tipo de coisa -- em grande parte lá produzida e difundida em programas de rádio, vídeos de Internet, websites etc. -- isso já pode ter pesado numa eleição presidencial, que se dirá aqui, onde os níveis educacionais são terríveis mesmo entre aqueles que tiveram estudo formal. Onde os ignorantes pululam, o mal só precisa de uma faísca.
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