Heróis de "A Droga da Obediência", Karas crescem e encaretam em novo livro
Os Karas cresceram e reapareceram. O grupo formado por Miguel, Chumbinho, Magrí, Crânio e Calú, jovens personagens criados pelo escritor paulista Pedro Bandeira, retornam de um limbo editorial de 15 anos, agora crescidos, bem-sucedidos e envoltos em nostalgia. Lançado esta semana na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, "A Droga da Amizade" (Ed. Moderna) é o sexto livro estrelado pelos heróis, que surgiram no best-seller "A Droga da Obediência" (1984) e vivenciaram sagas de aventuras em "Pântano de Sangue" (1987), "Anjo da Morte" (1988), "A Droga do Amor" (1994) e "Droga de Americana!" (1999).
O hiato de uma década e meia tem explicação. Em uma carta endereçada ao leitor, publicada na última página do novo livro, Bandeira, 72 anos, explica que tinha dificuldades em escrever novas aventuras d'Os Karas em decorrência do avanço da tecnologia, e que engavetou uma história pronta, "A Droga Virtual", por sentir que o material soava fora de contexto. Ele enxugou a trama, excluiu detalhes sobre tecnologia e lançou "Droga de Americana!". Sentindo-se "derrotado pelas modernidades", resolveu não mais investir n'Os Karas, a quem considerava seus "filhos da imaginação".
Obviamente, Bandeira voltou atrás na decisão. Mas a motivação não foi mercadológica, uma vez que ele continua sendo um dos autores infanto-juvenis brasileiros mais populares das últimas décadas, com mais de 20 milhões de exemplares comercializados em 31 anos de carreira. "A Droga da Obediência", com cerca de 1,5 milhão de cópias vendidas, continua ainda hoje requisitado como leitura obrigatória em escolas de ensino médio.
Na mesma carta ao leitor, o escritor explica os motivos para ressuscitar a saga. "A insistência dos meus leitores, sempre pedindo novas aventuras, levou-me a concluir que a modernidade não existe para bloquear coisa alguma, e sim para acelerar o desenvolvimento da humanidade". Ele não especifica a faixa etária dos fãs que requisitam novas tramas dos Karas, mas presume-se que uma parcela razoável seja de leitores já adultos, que tomaram primeiro contato com a obra de Bandeira há pelo menos duas décadas.
O fato é que "A Droga da Amizade" está longe de ser considerada uma nova aventura dos Karas, está mais para uma prequel, no qual Bandeira se dá ao luxo de remontar as origens dos personagens e desvendar elementos básicos da mitologia da série que criou. Estão lá os primeiros encontros entre os protagonistas nos corredores do fictício Colégio Elite, a fundação dos Karas, turma de agentes secretos amadores e bem-intencionados, as elaborações dos códigos e procedimentos secretos do grupo, e o fortalecimento das relações mútuas --a "droga da amizade" do título refere-se às afinidades e à sede de aventuras compartilhadas pelos cinco amigos.
Anos após a última aventura juntos, todos são bem-sucedidos e referências em suas respectivas profissões. Em um acesso de nostalgia, o líder Miguel rememora a adolescência momentos antes de realizar um importante discurso (algo que só é explicado na última linha do livro). Cada capítulo é destinado à origem de um dos integrantes ou no relato de algum momento-chave na consolidação dos Karas, e poderia até ser lido de maneira independente, como uma coleção de contos soltos e enfileirados.
Características cinematográficas
Tempos depois da publicação de "A Droga da Obediência", Bandeira declarou que a trama --a invenção de um entorpecente capaz de controlar as vontades das pessoas-- seria uma espécie de crítica metafórica à ditadura militar, que se encerraria no país em 1985, um ano após o lançamento do livro. Talvez por conta do momento político-social em que foi escrita, a prosa de Bandeira trazia características cinematográficas rígidas, de sentenças longas e rica em detalhes, ainda que brilhantemente fluída e endereçada a leitores recém-entrados na adolescência.
Leitores já crescidos e com memória afetiva em relação aos Karas talvez percebam certa diluição da narrativa de "A Droga da Amizade", principalmente se houver uma comparação imediata com os primeiros livros da série. Dessa vez, os parágrafos são curtos, as estruturas de texto são menos elaboradas e algumas frases chegam a soar mais ingênuas e deslocadas do que deveriam, pelo menos vindas da boca de um personagem na idade adulta.
Se levada em conta a maneira como se expressa em seus pensamentos em voz alta, dá para concluir que Miguel encaretou --algo que contraria o próprio mote dos Karas: "o avesso dos coroas, o contrário dos caretas". Pode-se especular que o formato mais leve do relato tenha sido uma escolha deliberada do autor, para embutir na obra um clima mais de retrospectiva saudosa e menos de thriller da aventura típica dos cinco livros anteriores. Seja como for, os fãs das antigas notarão a diferença de estilo.
Outro detalhe que não passa batido em "A Droga da Amizade" é uma incongruência cronológica em relação às primeiras aventuras, escritas na segunda metade da década de 1980. Nelas, mesmo que o autor jamais tenha especificado o ano em que ocorre cada história, fica óbvio que os Karas vivem em uma época de reduzida penetração tecnológica, com a inexistência de celulares ou computadores ligados à internet. Já em "A Droga da Amizade", as lembranças da gênese do grupo são pontuadas por diversas citações a sites, conferências virtuais e celulares com identificação de chamadas. Erro de continuidade ou uma tentativa brusca de atualizar a trama para gerações vindouras de leitores?
Em se tratando de uma série literária tão bem sucedida e que atingiu pelo menos duas gerações de leitores, uma pergunta surge pertinente ao longo das 170 páginas de "A Droga da Amizade": quem é o público-alvo? É possível que jovens leitores de primeira viagem se identifiquem com o universo dos Karas e tenham curiosidade de procurar os livros anteriores (que também ganharam relançamento com uma roupagem modernizada e capas ao estilo HQ, mas com texto idêntico ao original).
Mas, dada a natureza de prelúdio da narrativa, é certo assumir que é um produto principalmente endereçado aos fãs dedicados, aqueles que tomaram gosto pela leitura com aqueles livros, que sentem saudades das aventuras empolgantes de caráter vertiginoso e que gostariam que os destinos dos personagens fossem desvendados. Mexer com personagens adormecidos por 15 anos pode ser uma tarefa ingrata para um escritor. E, mesmo cumprindo somente parte das expectativas, Pedro Bandeira merece aplausos por se arriscar a tentar.
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