No início do século passado, um jovem chamado Franz Xaver Kappus estava muito insatisfeito com a vida que levava. Cadete da Academia Militar de Neustadt, em Viena, Kappus sentia-se solitário, inadequado às exigências da vida militar e, sendo jovem, todos os arroubos e apelos que a idade lhe fazia sofrer. Gostava de poesia, contudo, e nela encontrava consolação e desabafo, pois também recorria aos versos para exprimir — e talvez aliviar — suas angústias. Até o dia em que um acaso feliz lhe revelou que um dos autores que vinha lendo com maior interesse, Rainer Maria Rilke, fora aluno da mesma Academia que agora era para ele, Kappus, dever e prisão. Deve ter ficado agradavelmente surpreso ao ouvir que o cadete Rilke fora, como ele, um peixe fora d’água na rotina dos cadetes: quieto e sério, magro e pálido, tolerando penosamente as atividades de Neustadt, até por fim ser promovido para uma escola superior onde, ao verem os responsáveis local esta a sua falta de compleição para as armas, dispensaram-no, após o que foi completar seus estudos em Praga.
Kappus empolgou-se com essa história. Então, seu admirado poeta tivera ali também seus padecimentos? Pode-se bem imaginar o tipo de identificação aí criado, ou antes reforçado, ao divisar o jovem cadete uma forte experiência comum por trás dos versos, quando nada sabia disso, já o haviam atraído. Aconteceu, pois, que teve a idéia de mandar seus próprios versos a Rilke e pedir-lhe uma opinião, ao mesmo abrindo para o poeta o coração com uma sinceridade, como o próprio Kappus diria depois, jamais tivera antes nem voltaria a ter mais tarde. Decerto que não esperava apenas a opinião técnica do autor bem-sucedido. Ninguém entrega suas confidências, o produto de anos de ruminações e revoluções íntimas, aguardando uma mera crítica de métrica e conteúdo. O que, exatamente, o cadete esperava, só ele próprio poderia dizer. Mas é tentador tentar pôr-se em seu lugar e imaginar a ansiedade com que deve ter passado os dias seguintes ao envio. Haveria resposta? Se não, por quê? E, se viesse, o que traria? Uma crítica demolidora? Um elogio? Uma resposta-padrão impessoal e gélida?
Passaram-se semanas, e um envelope azul com carimbo de Paris veio ao encontro das esperanças e ansiedades do cadete Kappus. Começava ali, em fevereiro de 1903, uma troca de cartas que duraria mais cinco anos e ganharia um lugar na literatura universal. Delas, dez seriam selecionadas para publicação e dessa dezena primorosa extraio para cá algumas passagens. Reproduzo-as apenas para instigar a leitura dos textos na íntegra; não se pode pretender entendê-los e apreciá-los apenas por uma antologia.
Não se deixe perturbar na sua solidão pelo fato de sentir desejos de a abandonar. Usadas com calma e reflexão, essas tentações devem auxiliá-lo como instrumento capaz de alargar a sua solidão num país ainda mais rico e maior. Os homens possuem, para todas as coisas, soluções fáceis e convencionais, as mais fáceis das soluções fáceis. Entretanto, é sempre evidente que se deve preferir o difícil: tudo o que vive lá cabe. Cada ser se desenvolve e se defende à sua maneira e tira de si próprio, a todo custo e contra todos os empecilhos, essa forma única que é a sua. Conhecemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil nunca deve nos abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, motivo mais forte para a desejar. Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios. É por isso que os seres bastante novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam aprender. Com todas as energias do seu ser, reunidas no coração que bate inquieto e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é uma época de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até durante a vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste em uma criatura se entregar, se unir a outra logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda vagos, inacabados, dependentes?) O amor é a oportunidade única de sazonar, de adquirir forma, de nos tornarmos um universo para o ser amado. É uma alta exigência, uma cupidez sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais largos horizontes. Quando o amor aparece, os novos apenas deveriam enxergar nele o dever de trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos entregarmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso ajuntar muito tempo, acumular um tesouro.
Roma, 14 de maio de 1904.
No que tange a sentimentos, puros são todos aqueles em que se concentra toda a sua individualidade, e que o levam; impuros, todos aqueles que somente correspondem a uma parte de si mesmo e por conseqüência o deformam. Tudo o que pensa quando se relaciona à sua meninice, é bom. Tudo o que faz de si mais do que era até então nas suas melhores horas — é bom. Se toda a sua substância nela participar, toda a exaltação é boa, desde o instante em que não seja simples perturbação ou embriaguez, mas alegria límpida e translúcida.
Compreende o que quero dizer? A sua própria dúvida, se a educar, poderá tornar-se uma coisa sadia; isto é, transformar-se em instrumento de saber e de seleção. Pergunte-lhe, cada vez que a vir tentada a estragar alguma coisa, por que motivo acha essa coisa feia. Exija-lhe provas. Observe-a: vê-la-á talvez desorientada, em busca de um indício. Sobretudo, não abdique jamais. Não se esqueça nunca de indagar-lhe as suas razões. Virá o dia em que a dúvida, essa iconoclasta, se transformará num dos melhores artesãos — o mais inteligente, talvez, de todos os que trabalham na edificação da sua vida.
Furnborg, Jonsered, Suécia, 4 de novembro de 1904.
A própria arte é uma forma de vida. Podemos preparar-nos para ela sem o saber, vivendo de um modo ou de outro. Em tudo o que corresponde ao real estamos mais próximos da arte do que nessas chamadas profissões artísticas que não se fundamentam em nada na vida e que, ao mesmo tempo que copiam a arte, a negam e a ofendem.
Paris, 26 de dezembro de 1908.