domingo, outubro 31, 2004

Pílula musical

A este domingo calorento, o primeiro digno de uma primavera para lá de tardia , e no qual nada acontece de especial (telefones não tocam, caixas postais se mantêm vazias e amigos desaparecem), dedico a primeira sugestão musical deste novo Divagações:

Boadicea, Enya.

Porque o sublime ainda é o melhor antídoto para as horas tediosas da solidão.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Onde foi parar a imprensa dos EUA, o 4º poder?

Boom de documentários e livros políticos tenta compensar 11/9

Sylvie Kauffmann
Em Paris

(Le Monde, 27/10/2004)

Em 11 de setembro de 2001, Jehane Noujaim estava a bordo de um vôo da linha Londres-Nova York da Virgin Atlantic. O avião já havia decolado quando, de repente, ele recebeu a ordem de retornar. "Nós ficamos por mais de quatro horas sentados dentro do avião, que estava imobilizado na pista", conta, "e, não sei por quê, a tripulação não queria nos dizer o que estava acontecendo".

"Mas, depois de um certo tempo, alguns passageiros começaram a fazer ligações com os seus celulares, e foi assim que nós recebemos a notícia dos atentados, do desmoronamento das torres do World Trade Center. Havia muitas pessoas de Nova York a bordo; várias dentre elas choravam. Eu tive esse sentimento muito forte de que algo importante acabava de acontecer e que isso iria mudar muitas coisas".

Nascida em Washington há 30 anos, de um pai egípcio e de uma mãe americana, criada em parte no Egito antes de fazer os seus estudos em Harvard, Jehane Noujaim, cineasta, co-autora de um documentário que chamou muito a atenção nos Estados Unidos sobre a vida e a morte de uma empresa da idade de ouro da Internet (Start-Up.com), não demoraria a se encontrar no cerne do antagonismo árabe-americano.

Quando ela estava de passagem pelo Egito, ela assistia à Al Jazeera, que ela considerava como uma "força de democratização" no Oriente Médio: "Eu acreditava que era um canal que os Estados Unidos apoiariam".

Mas, quando ela voltava para os Estados Unidos, ela via uma imagem completamente diferente da Al Jazeera, uma imagem transformada em algo "diabólico", enquanto os canais americanos, no momento em que já se falava numa possível intervenção militar no Iraque, lhe davam cada vez mais a impressão de estarem exibindo "jogos de guerra de videogame".

"Eu achava isso muito frustrante", conta Jehane hoje, entre duas escalas nos seus deslocamentos com a campanha de John Kerry, sobre a qual ela está filmando, junto com Alexandra Kerry, a filha do candidato democrata, um novo documentário.

"Nós tentávamos entender a situação, indo dos discursos do Pentágono para as coletivas de imprensa no CentCom --Central Command, o quartel-general do exército americano--, passando pelos relatos dos enviados especiais integrados com as tropas do exército americano, e eu me perguntava: mas, as pessoas no Iraque, onde estão elas? Por que ninguém está explicando o porquê de tudo isso, por que as notícias não estão sendo tratadas com profundidade?"

Então, três semanas antes da ofensiva no Iraque, Jehane Noujaim embarcou a sua câmera e levantou vôo rumo ao Qatar. Lá, ela se deu conta de que o CentCom ficava a 15 minutos de carro da sede da Al Jazeera e decidiu reunir os dois elementos: a cobertura da emissora pan-árabe de um lado, os jornalistas americanos do outro, podendo contar, entre os dois, com a ajuda de um oficial americano encarregado das relações com os jornalistas árabes e que, mostrando-se tão perplexo quanto ela com esta situação, aceitou fornecer o seu auxílio no que fosse preciso.

O resultado dessa cobertura, o documentário "The Control Room, Different Channels, Different Truths" (A câmara de controle, canais diferentes, verdades diferentes), selecionado para o festival de Sundance na primavera de 2004, mostra de que maneira, antes e depois das primeiras semanas da guerra no Iraque, "o público americano teve uma versão da história, e o público árabe uma outra".

Desde a sua estréia, em junho, em Nova York, o sucesso foi imediato. "E eu que achava que eu só poderia exibi-lo no Canadá!", comenta, extasiada, Jehane Noujaim...

Menos polêmico do que o filme de Michael Moore, "Fahrenheit 9/11", por ser um puro documentário, "The Control Room" cumpriu a mesma função na América em guerra: oferecer ao público, imagens, informações e uma perspectiva que os canais de televisão americanos se abstiveram de lhe transmitir.

Outros cineastas tais como Robert Greenwald, o autor de um outro documentário, "Uncovered: the War on Iraq" ("Verdade Revelada - A Guerra no Iraque"), foram motivados pela mesma frustração diante do conformismo dos mais importantes entre os meios de comunicação americanos.

Imprensa covarde
Esse boom dos documentários e dos filmes políticos está sendo acompanhado paralelamente por um debate cada vez mais acirrado sobre a auto-censura que tem sido praticada pela mídia tradicional desde 11 de setembro de 2001, e sobre uma preocupação profissional com a objetividade, tão escrupulosa que ela acaba ocultando a realidade.

Michael Moore acaba de lançar nas lojas 3,5 milhões de DVDs de "Fahrenheit 9/11". Para Paul Krugman, o cronista do "New York Times", por mais criticável, "e por mais tendencioso e repleto de erros" que este filme possa ser, as pessoas vão assistir a ele "para aprender histórias verdadeiras que eles deveriam ter ouvido de outras fontes. Este filme está fazendo sucesso porque os meios de
comunicação respeitáveis não fizeram seu trabalho".

Aliás, ocorre que esses mesmos veículos de comunicação "respeitáveis" transponham, por vezes de maneira involuntária, a linha da respeitabilidade. É o que acaba de fazer a enviada especial do "Wall Street Journal" a Bagdá, Farnaz Fassihi, que, uma vez terminado o seu muito correto artigo do dia, tinha por hábito dar livre curso às suas emoções, escrevendo o que ela pensava realmente em mensagens que ela enviava por e-mails aos seus amigos.

Em 29 de setembro, um destes amigos, sem dúvida movido por um nobre sentimento, clicou sobre o comando "encaminhar". No espaço de alguns dias, o extenso e-mail-verdade de Farnaz Fassihi havia circulado no conjunto daquilo que o presidente Bush chama generosamente de "as Internets", por esta arma, que ele não controla, ser tão poderosa, e suscitou intensos debates no quadro da profissão.

Assim, o que diziam de tão estrondoso as missivas "censuradas" de Farnaz Fassihi (que podem ser encontradas no site www.poynter.org/column)? Elas contavam simplesmente, com a eloqüência e a emoção da carta escrita no calor dos acontecimentos, a vida cotidiana de um repórter americano e dos iraquianos em Bagdá, um relato pontuado pela seguinte constatação, que não deixa dúvida:
"O gênio do terrorismo, do caos e do desastre foi solto e paira sobre este país por causa dos erros americanos, e ninguém consegue enfiá-lo de volta na sua lâmpada".

A direção do "Wall Street Journal" apoiou publicamente a sua enviada especial, cujas reportagens que têm sido publicadas no diário não foram nem um pouco "prejudicadas" pelos seus pontos de vista pessoais; desde então, Farnaz Fassihi permanece contudo em silêncio e em férias, férias estas que foram prorrogadas oportunamente até 2 de novembro [data da eleição presidencial americana].

Cercados por uma aura de prestígio depois do Watergate, os veículos de comunicação americanos tornaram-se hoje alvos de todos os ataques.

"Na realidade", analisa Michael Massing, um antigo professor da escola de jornalismo da universidade Columbia e autor de várias críticas virulentas da cobertura do "New York Times", publicadas neste ano pela "New York Review of Books", "a imprensa, que havia adquirido um papel de contra-peso na época do Vietnã e de Nixon, começou a operar uma retirada durante o governo Reagan. É neste ponto que está concentrada toda a questão da relação entre a imprensa e o poder: quando se está lidando com um presidente forte, torna-se mais difícil agir como contra-poder".

Acrescenta-se a isso um evento com a dimensão dos atentados de 11 de setembro, dos quais Nova York, a capital dos meios de comunicação, foi um dos alvos, e a tendência torna-se ainda mais difícil de reverter.

Os juristas que lutaram contra as ameaças às liberdades públicas exercidas pela administração Bush não têm palavras duras o bastante contra os jornalistas, junto aos quais eles não encontraram nenhum apoio.

"A minha fé numa imprensa vigorosa e independente, tão crucial para a democracia, foi abalada", reconhece Tom Wilner, um dos advogados dos prisioneiros estrangeiros mantidos sob custódia em Guantánamo. Por sua vez, Michael Massing evoca um "enorme fracasso institucional, e um dos episódios mais sombrios da história da imprensa".

Os grandes veículos de comunicação tornaram-se objeto de gozação nos programas satíricos da televisão, cujo sucesso crescente demonstra a que ponto o público está sensível a este mal-estar.


Paródia reveladora
Parodiando o slogan da CNN, "o nome mais respeitado no mundo da informação" ("The Most Trusted Name in News"), Jon Stewart, o homem que está se tornando cada vez mais famoso, apresentando um falso jornal devastador, todas as noites, no canal Comedy Central, proclama-se "o nome mais respeitado no mundo da falsa informação" ("The Most Trusted Name in Fake News").

"Qual é a sua opinião?", perguntou certa noite Jon Stewart a um de seus falsos repórteres a respeito de um evento que ele deveria supostamente relatar para os telespectadores. "Eu não tenho opinião", respondeu o imitador. "Eu sou jornalista, Jon. O meu trabalho consiste em passar a metade do meu tempo repetindo o que diz um lado, e a outra metade repetindo o que diz o outro lado. É o que chamam de objetividade. Aliás, seria bom você se interessar um pouco por este assunto". E o público ri sem parar.

Os grandes nomes da verdadeira política acotovelam-se para serem convidados a participar deste falso jornal de Jon Stewart. No final das contas, resume a revista "Rolling Stone", o seu falso jornal "conta mais do que os verdadeiros".

Deixando-se levar por um surto notável de masoquismo, os jornalistas dos veículos convencionais convidam Jon Stewart para participar dos seus programas, lhe distribuem elogios nas suas colunas. A confusão é total.


Segredo corrompe a mídia
Para Stephen Holmes, um professor da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, "o ataque mais grave" conduzido pela administração Bush "foi dirigido contra a capacidade cognitiva deste país".

Isso porque, embora o "New York Times" e o "Washington Post" acabassem fazendo autocrítica a respeito da credulidade em relação às supostas armas de destruição maciça no Iraque, é preciso reconhecer que a equipe Bush vem praticando contra os veículos, desde muito antes de 11 de setembro, uma política do segredo que eles não conheciam desde a presidência Nixon.

Um relatório preparado pela Câmara dos representantes pelo eleito democrata Henry Waxman, publicado em setembro sob o título: "Secrecy in the Bush Administration" ("O Sigilo na Administração Bush"), mostra até que ponto o poder executivo procura reduzir, geralmente com sucesso, os efeitos das leis dos anos 60 e 70 sobre a transparência e o acesso à informação.

Um outro sintoma desta aversão pela mídia fica evidente quando se considera os infortúnios de Judith Miller, uma jornalista estrela do "New York Times", que foi ameaçada com uma pena de 18 meses de prisão caso ela persistir a se recusar a
revelar as suas fontes num inquérito a respeito do qual ela foi proibida de escrever uma linha sequer, sobre um agente da CIA cujo nome fora ilegalmente desvendado.

Num artigo editorial solenemente intitulado "A promessa da primeira emenda", Arthur Sulzberger Jr, o proprietário do "New York Times", denunciou vigorosamente essas pressões.

"É verdade, a imprensa está longe se ser perfeita. Nós somos humanos e nós cometemos erros. Mas os autores da nossa Constituição e da primeira emenda já haviam entendido tudo isso (...). O objetivo principal da garantia constitucional de uma imprensa livre é de "criar uma quarta instituição, fora do Estado, para ser um contra-poder suplementar em relação aos três ramos oficiais do poder".

Arrastada na lama alguns meses antes por ter dado sustento com facilidade excessiva à teoria oficial das armas de destruição maciça, Judith Miller é hoje tratada como mártir. "Deus a abençoe, Judith Miller, impossível impudente!", ironiza Jack Shafer, um cronista da revista eletrônica "Slate".

Portanto, será que o 11 de setembro de 2001, o Iraque e George W. Bush, conseguiram acabar com a liberdade de expressão, consagrada pela famosa primeira emenda?

Responder pela afirmativa seria contar sem dois fatores. O sobressalto, em primeiro lugar, que foi provocado pelo escândalo da tortura na prisão de Abou Ghraib e pela deterioração da situação no Iraque, que incentivou a imprensa a se mostrar mais agressiva. Depois, a profusão de meios de expressão outros que os veículos tradicionais.


Além do boom dos filmes documentários, o recente sucesso sem precedente dos livros políticos, começando por aquele do relatório oficial da comissão sobre o 11 de setembro de 2001, reflete uma sede do público por uma outra informação; em meados de outubro, oito dos quinze ensaios figurando na lista dos best-sellers do "New York Times" diziam respeito aos eventos do pós-11 de setembro, sendo que um nono era a autobiografia de Bill Clinton.


Blogs
Além disso, há a Internet, os cerca de 200 sites especializados em jornalismo, todos os quais servem também de fóruns de discussão, e o mais recente subproduto da Web, os blogs, que constituem um meio poderoso de disseminação.


Esta nova raça de "jornalistas de pijama", os blogueiros, mais comentaristas do que informadores, obteve a sua consagração ao conquistar neste verão o seu espaço reservado nas tribunas de imprensa, durante as convenções democrata e republicana.


Considerados como a forma mais evoluída da democratização da informação na Internet, que permite a qualquer um transformar-se num redator-em-chefe, criando o seu site a partir do seu sofá-cama, os blogs (contração de Web Log, literalmente diário de bordo na Internet) exercem um poder de agitação e possuem uma grande capacidade de incomodar a muita gente (o site technorati.com levanta uma lista de todos esses efeitos).

A "blogosfera" não escapa da polarização política: o quase-linchamento de Dan Rather, uma figura histórica da CBS News, que foi obrigado a pedir desculpas, em setembro, quando blogueiros de direita revelaram que ele havia utilizado --sem querer-- um documento falso a respeito do serviço militar de George W. Bush, ilustra ao mesmo tempo uma nova dinâmica da comunicação e a sede de revanche dos conservadores sobre os veículos tradicionais, considerados como favoráveis aos democratas.

Contudo, excetuando-se algumas cabeças da elite que utilizam este meio como um cavalo de batalha, os blogs raramente proporcionam qualquer "furo" de reportagem.

Da mesma forma que Jon Stewart ou Michael Moore, raros são os blogueiros que aceitam arriscar a sua vida partindo para Bagdá. A reportagem e a informação continuam sendo especialidades exclusivas do quarto poder, sob a estreita e dupla vigilância do poder executivo e de um quinto poder emergente.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

terça-feira, outubro 26, 2004

Os Grandes Assassinos do Século XX

Descobri um site muito interessante com numerosas estatísticas sobre o século XX: http://users.erols.com/mwhite28/20centry.htm. Escrito por Matthew White, um livreiro diletante que pelo visto tem um enorme gosto por História. O que ele criou é uma grande listagem de dados comentados sobre as mais variadas coisas, desde a população a cada década até a distribuição de Prêmios Nobéis, ou dados específicos de regiões do mundo. É certamente um recurso útil.
O que me chamou a atenção, porém, é a seção sobre os “hemoclismas” ("dilúvios de sangue") que flagelaram o mundo nesse período, isto é, os grandes massacres do século, encabeçando a lista as duas Guerras Mundiais, a Rússia/URSS e a China. White lista as cifras apresentadas por vários autores, faz algumas médias, comenta a confiabilidade das fontes usadas. Os números são invariavelmente chocantes, mas as discrepâncias também. As mortes atribuídas a Stálin, por exemplo, variam na ordem de dezenas de milhões dependendo do autor. Mas mesmo o “Grande Guia dos Povos” perde de longe do “Grande Timoneiro”: o “Grande Salto para a Frente” de Mao Tsé-Tung , uma tentativa de reestruturação da economia chinesa na década de 50, teria mandado pelo menos 40 milhões de pessoas para um encontro direto com seus ancestrais. Não foi um efeito premeditado, é bom que se diga, mas demonstra uma escala de catástrofe e horror que só um regime absolutamente desumano e insensível em suas políticas poderia produzir.

Inteligência e sabedoria não são a mesma coisa, é o que nos lembram várias tradições espirituais. O mero progresso técnico não nos torna necessariamente melhores moral ou socialmente, ao mesmo tempo em que aumenta cada vez mais o nosso poder sobre o mundo. Basta uma olhada superficial pelos números do século mais dinâmico da História para ver o que esse divórcio significa na prática.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Solidão

Não aprecio Fernando Pessoa. É um daqueles autores que contam com uma legião de admiradores devotos cujo sucesso me é quase incompreensível. O melhor que vi dele foram traduções excelentes dos poemas de Edgar Allan Poe. No entanto, por um feliz acaso topei com estes versos seus, e que bem traduzem o estado de espírito desta noite chuvosa. É o dom dos poetas autênticos exprimir aquilo que nós outros sentimos engasgar. Continuo não gostando dele. Mas hoje esse eclético versejador português ganhou meu respeito.

Solidão


Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração
Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.


Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.

terça-feira, outubro 19, 2004

De volta aos anos 50

Consegui encontrar na Internet, na página de um curso de Letras (!) da Universidade da Pensilvânia, alguns capítulos de The Organization Man, de William Whyte (1956). Trata-se de uma das grandes críticas sociais ao estilo de vida americano nos anos 50, mais especificamente ao domínio psicológico exercido pelo trabalho nas grandes corporações. O “homem organizacional” de que fala o título, embora continue reafirmando os valores da velha ética protestante de individualismo e trabalho duro, na verdade faz o oposto. Apesar da “mitologia”, tão presente no discurso americano, do self-made man, o homem organizacional só se pauta pelo que é aceito e instituído. É o grupo, e não o indivíduo, o seu referencial de verdade. “Transformar” a sociedade é algo que está completamente fora do seu horizonte, o que ele faz é adaptar-se ao máximo a ela: fazer um curso profissionalizante, se possível técnico; arranjar um emprego em uma empresa que lhe garanta estabilidade e segurança; casar, ter filhos e morar em uma casa de subúrbio com um ou dois carros na garagem. Acrescente-se a isso um hobby qualquer e um churrasco com os amigos uma vez por semana. Pronto, eis a vida perfeita, sem contratempos, insegurança ou mudanças bruscas. Por volta dos 30 anos, o homem organizacional provavelmente terá chegado ao ponto de sua vida onde permanecerá até o último dos seus dias. Nada poderá interferir nesse pequeno paraíso suburbano de previsibilidade.
A crítica não veio do nada. Os Fifties americanos são largamente conhecidos como uma época de complacência e conformismo, na qual a prosperidade (“afluência”, diria J. K. Galbraith), pelo lado positivo, e o macartismo e o puritanismo, pelo negativo, garantiam que a grande maioria “entrasse na linha”. É a época em que um seriado em que não acontece absolutamente nada de importante, como Papai Sabe Tudo, é um sucesso estrondoso de audiência. Carrões cromados, pleno emprego, filmes românticos em que os protagonistas, mesmo casados, dormiam em camas separadas, davam o tom dos ideais de uma classe média próspera e complacente. Havia problemas, é claro, como o comunismo e “a Bomba”, mas era perfeitamente possível ignorar esses incômodos. Se é verdade que as crianças eram obrigadas a exercícios rotineiros de proteção em caso de bombardeio – enfiar-se sob as carteiras contra uma bomba atômica! --, também é que havia
Truman, Ike, Dulles e McCarthy para dar conta dos inimigos. A sociedade mais próspera da Terra podia se dar ao luxo de olhar para si mesma com lentes róseas e lisonjeiras.
Nem todos compartilhavam desse enlevo ególatra, no entanto. Enquanto a classe média branca em ascensão migrava para os subúrbios, deixava as cidades depauperadas para negros, hispânicos e pobres em geral se amontoarem em seus guetos. Nos estados do sul, apesar da atuação de algumas organizações e de decisões da Suprema Corte, a
segregação mais atroz ainda era a regra, defendida até como uma necessidade do estilo de vida sulista. Nas universidade, centro de saber e reflexão, estudantes evitavam até mesmo assinar petições por cafeteiras no campus para não se verem associados a colegas de opiniões suspeitas, alguns milhares de outras perdiam empregos e eram incluídas em listas negras. Questionar o sistema, como diríamos hoje, era um risco. Pouco importavam as suas verdadeiras convicções políticas, o essencial era o que os outros achariam de você. Era mais seguro não chamar atenção.
Felizmente, esses aspectos negativos não passaram em branco. Por mais espraiado que fosse, o homem organizacional não resumia o espírito de toda a nação. Não era preciso ser vítima direta dessa ordem de coisas para se ter uma visão lúcida de que as coisas não iam tão bem quanto pregava a mensagem do Papai sabe tudo. Nem todos os problemas eram externos, obra de seres sombrios incapazes de compreender a grandeza da América. É nesse contexto que surgem os primeiros livros de cabeceira dos jovens que abalarão o país na década seguinte: Growing Up Absurd, de Paul Goodman; The Power Elite, do sociólogo bad boy
C. Wright Mills e... The Organization Man. Obras que começaram a mostrar aos americanos que sua sociedade não era tão democrática, livre ou modelar quanto muitos deles gostavam de alardear. Esse surto de auto-crítica teria grandes conseqüências em pouco tempo. Mas esse é um assunto para um post futuro.

domingo, outubro 10, 2004

Grandeza

“Trazia, reunidas, todas as qualidades dos maiores homens: tinha o pescoço torto como Alexandre; coçava a cabeça como César; bebia café como Leibniz; sentado numa poltrona, esquecia-se de comer e beber como Newton; usava cabeleireira como a do doutor Johnson; e deixava constantemente fora da casa um dos botões das calças como Cervantes.”

G. C. Lichtenberg

Escrita

“Escrever! Poder escrever! Isto significa o longo devaneio diante da folha em branco, o rabiscar inconsciente, o brincar da pena que gira em torno do borrão de tinta, que mordisca a palavra imperfeita, enche de garras, de flechazinhas, orna-a de antenas, de patas, até que venha a perder a sua figura legível de palavra, metamorfoseada que foi em fantástico inseto, borboleta-fada que alçou seu vôo.

Escrever... É o olhar fixo, hipnotizado pelo reflexo da janela sobre o tinteiro de prata, é a divina febre que assoma às faces, à fronte, enquanto uma bem-aventurada morte gela sobre o papel a mão que escreve. É também o pleno olvido da hora, a indolência no macio divã, essas bacanais do espírito inventivo donde saímos curvados, embrutecidos, mas já recompensados, mensageiros dos tesouros que, sob o pequeno círculo de luz que a lâmpada descreve, serão entornados na página virgem...

Escrever! Tentação de purgar raivosamente tudo de mais sincero que nos vai pela alma adentro, e rápido, com aquela rapidez que faz a mão relutar e protestar contra o deus impaciente que a guia... depois encontrar, no dia seguinte, em vez do ramo de ouro, miraculosamente desabrochado na hora flamejante, um espinheiro seco, uma flor abortada...

Escrever! Gozo e sofrimento dos ociosos! Escrever! ...Bem que experimento, de tempos em tempos, essa necessidade, intensa como a sede no verão, de anotar, de exprimir... E pego então da pena, para dar início àquele jogo perigoso e traiçoeiro que, através do bico duplo e flexível, apanha e fixa o mutável, o fugaz, o apaixonante adjetivo...”

Gabrielle S. Collette, A Vagabunda